Redemoinho #1 - Uma conversa com Dalva Soares: cronista, mãe do menino e mulher do povo
A newsletter de literatura do Nonada
Olá, tudo bem?
Meu nome é Rafael Gloria, sou jornalista e escrevo aqui de Porto Alegre. É começo de março e o verão segue forte nesta cidade que tem fama de ser fria. Mas, acredite, temos um calor opressivo aqui também. E é sob esse sol que envio para vocês a primeira edição da Redemoinho, a newsletter de literatura do Nonada Jornalismo.
Quero escrever como se falasse com um grande amigo, de forma íntima, sem ser apressado. Gostaria, para falar a verdade, de escrever no espírito daquela frase de Guimarães Rosa: “conversar, do igual o igual, desarmado”. Esse texto, então, é um diálogo, aqui o objetivo não é apenas mostrar links, fazer uma curadoria de matérias, mas abrir essa correspondência trocando assuntos relativos à literatura, particularmente a brasileira, e que merece - em meu juízo - serem destacados.
E, para isso, nada melhor do que começar com uma escritora de uma cidade chamada Baldim, no estado de Minas Gerais, conterrânea do nosso padrinho Guimarães Rosa. Não conheço a Dalva Soares pessoalmente, mas foi primeiro através das redes sociais que tive contato com as suas palavras. Depois, fazendo o perfil do escritor José Falero, troquei algumas mensagens com ela para colher um depoimento em julho do ano passado. Eles são um casal, companheiros de vida e de escrita.
Após isso, Dalva me enviou exemplares de dois de seus livros: “Para diminuir a febre de sentir” e “Do menino”, ambos fazem parte da coleção Mulherio das Letras e foram lançados pela editora Vienas Abiertas. O correr da vida embrulha tudo (não é?) e só consegui lê-los no início deste ano. E cheguei à conclusão de que preciso organizar melhor as minhas prioridades, pois deveria ter lido muito antes.
Primeiro texto de Para diminuir a febre de sentir, “Confissões” dá o tom para o que leremos a seguir. Nele, são descritas várias definições de o que seria uma confissão, sendo a do poeta Fernando Pessoa a que empresta o nome à publicação. Então, é por aí, pelas brechas de uma confidência por vezes escancaradas, por vezes minuciosas, que somos convidados a refletir sobre esses textos compostos por misturas de lembranças da infância, da família, dos parentes, da cidade de Baldim, dos costumes, das caminhadas. A partir de uma linguagem rebuscada, Dalva nos conduz por um dia de Reis, apresentando membros da família, da comunidade, seus problemas mundanos que também são nossos. Em outro texto, há um bonito deslumbramento na primeira viagem de avião de seu irmão. Quando fala de sua mãe, a emoção aflora e o sentimento fica mais forte ainda.
Dalva escreve com a subjetividade na ponta dos dedos, mas com completo controle de onde quer chegar. Isto é, a maioria dos seus textos tem propósito, objetivo, missão e são cheios de referências: escritoras, escritores, intelectuais, poetas, rappers. Ela é doutora em antropologia social e professora, sua bagagem intelectual é grande e diversificada. Em seus textos também vemos a dificuldade para se inserir como professora devido a concursos muito acirrados. Sentimos muito com ela e por ela. Nosso modo de ver o mundo também fica febril.
Já em “Do menino” acompanhamos a relação de Dalva e seu filho, João. Organizados de forma temporal, basicamente desde a sua concepção até começar a trilhar o seu caminho no início da vida adulta. É bonito o modo como ambos se influenciam, aprendendo um com o outro. Ficamos empolgados com a descoberta da negritude de João, o crescimento progressivo e consciente de menino para a fase mais adolescente. Depois de mais velho, vemos a aflição de Dalva sobre alguns aspectos da vida de seu filho que parecem refletir o dela. Como é o caso do primeiro trabalho que os dois tiveram na vida, o de servente.
Em um tom de indignação, ela reflete sobre a mudança ou a falta de mudanças para a política pública em relação aos jovens. Indignação é também uma boa palavra para definir alguns de seus textos, que tem uma forte consciência crítica e social. Mas é no corte da proximidade e no afastamento natural da relação que estão os momentos mais emocionantes do livro. Usando uma metáfora bem melhor, do grande músico Cartola, também referenciado no belo prefácio do livro realizado pela escritora Lilia Guerra: “Deixe-me ir, preciso andar”.
Troquei áudios recentemente com Dalva e ela me contou que está escrevendo o seu primeiro romance.
Sempre me incomodou muito a forma como as empregadas, os subalternizados de uma maneira geral, são retratadas na literatura. E uns anos atrás eu estava lendo o livro Todas as crônicas da Clarice, e ela tem uma sequência de textos em que fala sobre as várias empregadas que ela teve. E uma delas, uma mineira calada chamada Aninha, que era arrumadeira em um apartamento no Leme, ela conta que essa mineira calada queria um livro dela emprestado. E ela não emprestou, e não só não emprestou como disse que ela não iria entender os livros, que eles eram muito complicados. Na crônica, Clarice escreve que essa menina ficou chateada, e que essa menina contra-argumentou algo do tipo “eu não gosto de água com açúcar, eu gosto de coisa complicada”, e isso me incomodou demais. E então eu comecei a criar uma biografia para Aninha que, para compensar, ainda é mineira. Eu me vi na Aninha, eu já fui empregada doméstica, eu sou de uma família de sete mulheres e todas nós, em algum momento, inclusive a minha mãe, fomos empregadas domésticas.
Eu leio muito Clarice, eu gosto muito, que fique claro, acho ela é uma escritora foda. Tenho um pouco de dificuldade com os romances, tirando o Hora da Estrela, fico até pensando que tem alguma coisa de Aninha na Macabéa, sabe? Comecei a escrever o livro na terceira pessoa, com o narrador onisciente, mas a personagem da patroa estava ganhando um protagonismo grande, e a Aninha se tornou muito coadjuvante e não era essa a minha intenção. E, então, fui fazer um experimento. Não sou uma ficcionista, não sou uma romancista, sou uma cronista, então acho difícil escrever romance. Mas tive um insight e resolvi experimentar escrever em forma de carta. E aí eu gostei, porque a minha escrita é muito intuitiva. Não domino todas as técnicas, fiz um ou outro curso de escrita criativa, mas, sabe, eu vou muito na intuição…E eu amo cartas. E escrevi muita carta também, me correspondi com as minhas irmãs e a minha mãe muito por cartas. Eu achei um lugar muito confortável, achei que a escrita ficou parecida com a minha escrita. A terceira pessoa tinha ficado muito artificial, então, é isso, a Aninha, a minha Aninha, nas cartas ela ganhou protagonismo e a patroa ficou de coadjuvante. Para você ter uma ideia, no romance a patroa não tem nome, é uma vingança. E agora as irmãs e a mãe da Aninha ganharam também mais protagonismo.
Eu já tenho alguns capítulos escritos, mas essa coisa da sobrevivência rouba tempo. Essa coisa de ser uma mulher do povo, mãe de filho de tá no rolê independente, ou seja, os meus livrinhos, os dois que você leu, é que tem colocado comida na minha mesa desde 2020. E é um rolê para vender, eu tenho que ficar divulgando nas redes sociais e isso me toma tempo, tenho que ficar indo nos correios, acaba que não dedico o tempo que eu gostaria para esse romance. Também estou envolvido nos concursos, vou fazer outro agora, então me toma um tempo em que eu queria estar dedicando ao romance, mas eu tenho esperança de que ele fique pronto esse ano. Porque é uma questão de honra, se eu não conseguir escrever esse romance, eu vou ficar muito frustrada.
Em outras notas
- Você sabe como foi formado o português? O professor, tradutor e escritor Rogério Galindo lançou em janeiro o livro “Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português”, pela Companhia das Letras. Nele, convida o leitor a conhecer a história do Português, reconstituindo a sua trajetória desde os primórdios, começando pela Europa e pelo latim. Há um destaque para o povo originário e a população negra, que costumeiramente são inviabilizados nas narrativas sobre o nosso idioma. Escrevi essa matéria para Nonada.
- A repórter do Nonada Anna Ortega escreveu uma bela resenha do livro vencedor do Jabuti na categoria contos em 2021 Flor de Gume, da escritora Monique Malcher. Os contos têm uma proximidade com a poesia. “São contos-poemas, flor e gume, lança e alvo. Monique tem uma escrita cortante, que ao fim de cada texto, parece pedir um tempo de respiro, ao mesmo tempo em que demanda uma voracidade para seguir. Devorar o livro não é hipérbole, porque a intensidade do que contém combina com uma certa autorização de pensar violento. Escrever violento. Como a imagem de escrever coisa ruim na areia para o rio levar – sabedoria aprendida com uma avó em um dos contos. Ser mulher e poder falar das tripas, sinuosas como são, foi uma das marcas que o livro deixou em mim”, escreveu Anna. Leia a resenha completa aqui.
- E esses dias em uma conversa com a escritora Julia Dantas, autora de Ruina y Leveza e Ela se chama Rodolfo para um perfil que estou escrevendo e que será lançado em breve, falamos um pouco sobre a importância da leitura de seus textos por colegas e pares. É uma coisa que venho pensando há um tempo também para textos jornalísticos, a necessidade de se criar grupos de escrita e troca desse tipo.
“Até hoje ter a leitura de outras pessoas para mim é fundamental, porque a gente escreve e quando vai ler o que você mesmo escreveu o que está no papel se mistura com a sua memória do que você queria fazer, mas não quer dizer que realmente tenha feito. As nossas intenções não chegam todas no papel, e aí você está lendo e coloca uma intenção em uma cena que possivelmente não está lá para quem vai ler fora da tua cabeça. Então, eu acho essencial que alguém leia e diga "eu entendi assim". E aí dependendo você tem que mexer de novo, ou deixa, às vezes a gente decide deixar na ambiguidade. Mas alguém que traga esse olhar que não está carregado com o que você sonhou, imaginou e cogitou enquanto escrevia, é essencial” - Julia Dantas
Apóstrofos
- A Câmara Brasileira do Livro (CBL) lançou essa semana uma temporada de podcasts nas principais plataformas de streaming de áudio. O primeiro papo foi com o atual presidente da instituição.
- E essa matéria da Revista Quatro cinco um sobre os desafios de traduzir três livros infanto-juvenis da pensadora norte-americana bell hooks, você já leu?
- A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea do Itaú Cultural apresenta o trabalho de escritores da cena literária atual. A mais recente coluna apresenta o trabalho de Camillo César Alvarenga (caboclo guajajara), dono de uma poética que reivindica a força de Orixá, a magia dos encantados, o saber dos mestres e mestras da cultura afrodiaspórica e indígena.
Da memória
Por indicação da Dalva Soares, hoje leremos uma carta retirada do livro Cartas a uma negra, que demonstra como Carolina Maria de Jesus se tornou, sem saber, a grande interlocutora da escritora franco-antilhana Françoise Ega. Ela trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um de seus pequenos prazeres era ler a revista Paris Match, na qual deparou com um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de despejo. Identificou-se prontamente. E passou a escrever "cartas" ― jamais entregues ― à autora brasileira. Nelas, relatava seu cotidiano de trabalho e exploração na França, as dificuldades, a injustiça nas relações sociais, a posição subalterna (e muitas vezes humilhante) a que eram relegadas tantas mulheres como ela, de pele negra e originárias de uma colônia francesa no Caribe. Aos poucos, foi se conscientizando e passou a lutar por seus direitos. Quando morreu, em 1976, era um nome importante na sociedade civil francesa.
Essa também é uma forma do podcast Quando Chegou Carta, Abri, que eu realizei durante dois anos, continuar vivo.
Escute aqui: