Redemoinho #16 - Regina Dalcastagnè fala sobre literatura brasileira contemporânea e o papel da crítica
E mais: nova seção "Recebidos" e pensamentos sobre a Feira do Livro de Porto Alegre
Final de outubro até meados de novembro o centro histórico de Porto Alegre é tomado por bancas de livros. Há quase 70 anos essa é uma tradição da cidade e por mais que se tenha críticas à curadoria ou ao modelo de organização da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, é preciso celebrar a sua existência e continuidade.
Já tive a oportunidade de cobrir o evento tanto do lado de um veículo jornalístico quanto trabalhando nele, como assessor, escrevendo e cobrindo para o site oficial as diversas mesas e palestras que rolam por lá - tudo gratuito. E vi a Feira mudar e tentar alcançar uma diversidade maior ao longo dos anos para acompanhar também as mudanças do sistema literário brasileiro, que vagaroso passou a assimilar autoras e autores periféricos, por exemplo, que já publicavam também em editoras menores - essas sim, agentes importantes nessa mudança geral.
Sabemos que a intenção da Feira antes de tudo é aproximar o livro do público, mas também é vender. É um momento de renda importante para as editoras e livreiros por aqui. Diferente de uma Flip, por exemplo, em que há um olhar curatorial mais “incisivo”. Não entendam como uma crítica o fato de que um dos objetivos principais da Feira é vender. Ela já nasceu com essa intenção lá na década de 1950, quando os primeiros livreiros montaram as bancas na Praça. Aliás, uma vez escrevi um perfil sobre um desses pioneiros, o Edgardo Xavier, e conto um pouco dessa história.
Nesta edição da Redemoinho, trago trechos da mesa da professora Regina Dalcastagnè, referência no estudo do romance contemporâneo brasileiro. Há uma novidade também que pretendo tornar fixa: a seção Recebidos, nela vou apresentar alguns dos livros que me enviam. Aliás, se você quiser me enviar um livro entra em contato comigo!
No último domingo (5), a Feira não estava tão lotada quando no dia anterior, quando dei uma passada para pegar o lançamento de um amigo. Mas o dia estava bonito e fui ver a professora e pesquisadora Regina Dalcastagné falar no auditório Barbosa Lessa, dentro da programação, o bate papo seria sobre o papel da crítica literária, uma questão que parece sempre voltar nesses eventos e no debate da área de modo geral. Mas é sempre bom ver uma intelectual como ela falando e a conversa rumou para vários assuntos, entre eles, suas pesquisas que fizeram - e fazem - um verdadeiro retrato do romance contemporâneo brasileiro. Compartilho aqui algumas das anotações que fiz da conversa, mediada pelo professor da pós-graduação em Letras da Pucrs, Ricardo Barberena.
Sobre crítica literária e os espaços que devem ser ocupados, a professora vê com bons olhos a utilização do formato das redes sociais, booktubers, mas sem perder também a profundidade crítica, quando necessário:
“O mercado editorial, as bibliotecas, as políticas públicas da literatura, eu acho que tudo isso compete também a crítica literária. Não existe no Brasil, aquela pessoa que faz exclusivamente crítica literária. Eu fui jornalista e escrevia para o jornal, mas escrevia sobre outras coisas também, até porque o espaço era pequeno mesmo. No Brasil, você não pode ser só um pesquisador da literatura, você sempre é um professor também, então as coisas andam juntas e eu acho que não dá para pensar a literatura sem contemplar todos esses espaços e hoje especialmente também as redes sociais. Temos diversas entradas e diversos lugares possíveis, então, o que acho é que não dá para abandonar nenhum deles. Até porque é preciso ocupar os lugares possíveis para falar sobre literatura, questionar, refletir, passamos alguns aí com pessoas dizendo que livros tinham letras demais, palavras demais, que desprezaram o conhecimento, a cultura, a literatura”.
A professora reflete sobre as mudanças no sistema literário brasileiro nos últimos anos e também o impacto das suas pesquisas sobre o romance contemporâneo.
“O que acho que mudou nos últimos tempos tem a ver com uma disseminação, uma distribuição a partir das pequenas editoras. E acho que essa pesquisa ajudou também. Para as pessoas dizerem, olha, esse prêmio existe há 15 anos e todos os premiados foram homens. Quando você começa a questionar isso, o que acontece? Os prêmios começaram a colocar mulheres no júri. Eu acompanhei isso, fiz parte de júris também. Às vezes eram apenas duas mulheres e 15 homens em um júri. E isso vai mudando, porque tem uma comunidade alertando, se mostrando desconfortável com isso. Então, a partir do momento em que você começa a questionar, chama a atenção, inclusive, para um jurado homem, branco, etc. De que ele tem que olhar com mais atenção outras produções.
Não existe livro perfeito. Eu sempre vou conseguir achar um defeito aqui, um problema aqui, uma personagem que me parece mal elaborada. A questão é que parece que isso só era apontado para determinados autores, para determinados grupos. A partir do momento que você começa a pressionar, no bom sentido da palavra, a dizer: “olha com mais atenção”. Eu acho que isso muda um pouco. E o que mudou para mim também foi essa profissionalização das pequenas editoras. A gente sabe, são pessoas que estão aí batalhando, publicando livros, querem publicar em diferentes lugares do país.
Há uma dificuldade muito grande para se publicar no Nordeste, no Norte, no País do Centro-Oeste, etc. Então a partir do momento que essas pequenas editoras vão surgindo e vão sentindo necessidade de publicar os “locais”, vai-se abrindo espaços. E é uma forma de dar visibilidade. Você escreve para o quê? Para colocar em uma gaveta? Você quer publicar. Então, esse movimento, para mim, é fundamental. Especialmente por isso. Então, há mais mulheres publicando, uma visibilidade maior para pessoas negras escrevendo. E eu acho que agora a nossa atenção maior tem que ser a visibilidade de autores das diversas regiões do país, fora do eixo Rio-São Paulo. Até porque esse país é grande demais, tem uma cultura interessantíssima. Porque tem outro chão, tem outras preocupações, tem um rio. É um outro mundo. E é fascinante.”
Dalcaganstè está escrevendo um novo livro, e falou um pouco sobre o processo desse trabalho, uma história da narrativa contemporânea brasileira. A previsão é que saia no segundo semestre de 2024, segundo ela comentou na palestra:
“Estou me divertindo e estou cansadíssima. Na verdade, escrever uma história da literatura brasileira é impossível. É só da narrativa, na verdade. Conto, romance, crônica, com um recorte de 50 anos, de 1970 aos dias de hoje. Não vou fazer uma cronologia, não estou fazendo uma obra de teoria literária. Na verdade, é uma obra com a intenção de chegar ao maior número de pessoas possível.
A ideia é pegar justamente problemas, questões que me parecem importantes, dentro desse conjunto todo nesse tempo todo, e tentar observar como ela vai sendo discutida ao longo das décadas. É claro que algumas questões estão muito mais próximas dos dias de hoje, outras estão muito mais próximas do passado. Uma discussão sobre literatura e política, por exemplo, literatura e ditadura, a gente começa, logicamente, nos anos 70, vai chegando, passa por discussões sobre censura dos últimos tempos, mas a maior parte fica lá. Fica ou não fica? São tantas obras recentes trabalhando sobre a ditadura também.
O livro começa com um momento de transição, os romances, contos, que mostram o deslocamento dos brasileiros e brasileiras do meio rural para a cidade, porque a literatura contemporânea é muito urbana. Então, a gente vai vendo esse deslocamento, a vida na cidade sendo representada nos textos. E, muito recentemente, muito recentemente mesmo, uma volta... Porque o Brasil deu as costas, a literatura brasileira deu as costas ao meio rural. Nos anos 70, vai desaparecendo. E hoje há um retorno, com sucesso absoluto, por exemplo, com Torto Arado, do Itamar Vieira Junior, mas também com vários outros autores fazendo esse retorno para o mundo rural, voltando a olhar com esse espaço, que pode ser tão violento, brigas por terra, etc. E também abrangendo questões indígenas, a questão da terra.
Então, hoje eu estou tentando passar por diversos momentos e ver diferentes modos. Outra era a questão da dor e do sofrimento. Mais recentemente, puxando para a questão da pandemia e, no meio do tempo, falando de questões de doenças mentais, de sofrimento psicológico, etc. Cada capítulo vai ser um percurso sobre algo que eu escolhi, que eu julgo que é importante, depois de tanta leitura sobre esse processo.
Os autores me mandam os livros. Eu estou usando as redes sociais a meu favor. Durante a pandemia, eu não podia sair de dentro de casa para ir à biblioteca que estava fechada. E aí eu precisava lembrar de um livro sobre tal assunto. Essa é a minha experiência da crítica literária que eu acho a mais divertida. Eu fui para o Facebook. Tem muitos seguidores, escritores, professores de literatura, etc., com quem eu dialogo muito.
E aí coloquei lá, estou precisando de livros sobre futebol. Alguém lembra? Aí vem cem sugestões de livros, contos, etc. Agora eu preciso de alguma coisa sobre carnaval. 80 sugestões. E é maravilhoso porque, de repente, é óbvio que eu não tenho condições de lembrar de tudo. Então, é um livro que está sendo construído, apesar de tudo, coletivamente”.
Recebidos
- Meu avô Tatanene, de Teresa Cárdenas - Focado na relação de afeto entre Reglita, uma menina de doze anos, e seu avô Gregório, um quilombola já idoso que sonha ir à África para conhecer a terra de onde seu avô veio e deu origem a sua família. Publicada pela Editora de Cultura, com tradução de Caio Riter, a obra, através de uma narração infantil bem conduzida, mescla imaginação, histórias ancestrais, memória, resistência e construção de identidade com momentos de amor e descoberta.
- Salazar e os fascismos, de Fernando Rosas - Publicado pela editora Tinta da China, o livro traz reflexões sobre o fascismo a partir do estudo comparativo entre o Estado Novo em Portugal e os regimes totalitários de Hitler e Mussolini. Rosas discute os elementos para a caracterização teórica do fascismo, passa em revista as pré-condições históricas que contribuíram para a emergência dos regimes fascistas e se debruça sobre o caso lusitano.O autor é também professor no Departamento de História na Universidade de Lisboa e o livro ganhou o prêmio da Fundação Calouste Gulbenkian.
Em outras notas
- Escrevi sobre o novo livro da escritora Lilia Guerra, O céu para os bastardos, publicado pela Todavia. Com uma prosa fluida, a autora consegue aproximar o leitor da sua protagonista, Sá Narinha, mulher que atua como trabalhadora doméstica e que tem um caderno de memórias e um olhar muito aguçado ao seu entorno. É por seu ponto de vista e comentários que conhecemos Fim-do-Mundo, periferia onde habitam os personagens do romance. Confere aqui.
- A 25ª edição da Festa do Livro da USP começa nesta quarta e vai até domingo. Para quem está em São Paulo, é imperdível. O evento conta com 212 editoras oferecendo descontos mínimos de 50% no preço de capa das obras. Já é possível consultar listas de livros das editoras participantes pelo site. Organizada anualmente pela Edusp desde 1999, a Festa do Livro da USP permite ao leitor o contato com editoras que têm pouca divulgação no mercado editorial, muitas das quais de pequeno porte, ao lado de editoras conhecidas e de grande expressão no mercado.
- Saíram os finalistas da edição 2023 do prêmio Oceanos. Quatro brasileiros, quatro portugueses e dois cabo-verdianos, publicados por nove editoras, foram selecionados para disputar o prêmio nas categorias de prosa e poesia.
Na poesia, foram selecionados quatro livros de autores brasileiros e um de autor português. São eles: Alma Corsária, da brasileira Cláudia Roquette-Pinto (34), Diário da encruza, do brasileiro Ricardo Aleixo (Segundo selo), Entre costas duplicadas desce um rio, do brasileiro Guilherme Gontijo Flores (Ars et Vita), O gosto amargo dos metais, da brasileira Prisca Agustoni (7Letras) e Paraíso, do português Pedro Eiras (Assírio & Alvim).
Já em prosa, foram selecionados três romances de autores portugueses e dois de cabo-verdianos. Os livros concorrentes para a final são A história de Roma, da portuguesa Joana Bértholo (Caminho), A última lua de homem grande, do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa (Dom Quixote), Misericórdia, da portuguesa Lídia Jorge (Dom Quixote), Naufrágio, do português João Tordo (Companhia das Letras Portugal) e Siríaco e Mister Charles, do cabo-verdiano Joaquim Arena (Quetzal).
Apóstrofos
- Listão literatura negra 2023 da revista Quatro Cinco Um atualizado, veja aqui.
- Prêmio Todavia de Não-Ficção vai para jornalista alagoana, leia na Revista O Grito.
- Por que ler Ítalo Calvino em seu centenário, confere na Suplemento Pernambuco
Extras
Segue a gente lá no instagram da Redemoinho. Segue também o Nonada Jornalismo nas redes sociais. Lançamos recentemente a Rede Veredas de Artistas e Educadores Decoloniais, que reúne artistas e educadores interessados em uma perspectiva centrada no sul global, com interseccionalidade em questões de gênero, raciais, geográficas e demais questões sociais e identitárias. É um mapeamento que já reúne mais de setenta artistas e educadores de todo o Brasil e o número segue crescendo. Ainda tem uma super reportagem falando sobre cultura e justiça climática, que apesar de estarem diretamente atreladas, o vínculo ainda não é reconhecido. Embora o debate já esteja mais avançado a nível mundial, no Brasil, ele é incipiente no que se refere a políticas públicas claramente estabelecidas.
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