Redemoinho #17 - Autores falam sobre o rótulo da “literatura regional”
Conversamos com Cristhiano Aguiar, Fernanda Bastos e Monique Malcher sobre o assunto
Olá, pessoal! Como vão?
Vocês já devem ter ouvido aquela frase de que as ideias estão circulando por aí e tudo o que nós podemos fazer é “capturá-las”. No jornalismo, isso é muito comum, tanto que costumamos falar que se você pensou em uma pauta, outros jornalistas devem ter pensado também. Então, é melhor se apressar para lançar primeiro. Essa costuma ser a lógica em uma rotina jornalística normal. Mas pressa nem sempre é sinônimo de qualidade, há outros modos de se fazer jornalismo sem esse tipo de cobrança.
Tudo isso para dizer que o assunto que trago nesta newsletter hoje, a ideia de discutir o que é “regionalismo” na literatura brasileira, foi adiantado porque um grande jornal acabou fazendo uma matéria sobre esse mesmo assunto recentemente. Era uma pauta muito parecida com a que já tinha escrito para a revista Nonada impressa, que deve sair em dezembro. Mas é da vida e do campo de trabalho. E obviamente o assunto não se esgota em matérias jornalísticas. Mas é isso, as ideias estão por aí, e mostra que o tema é de interesse, ou pelo menos, tem a tendência a conectar as pessoas. Trago então um pedaço da matéria que escrevi nessa news de hoje. Além disso, nessa edição também trazemos as tradicionais notas e os livros recebidos. Boa leitura!
Em busca de respostas para algumas questões complicadas, conversamos com os escritores e escritoras Cristhiano Aguiar, Fernanda Bastos e Monique Malcher. Aguiar nasceu em Campina Grande, na Paraíba, e é autor de Gótico Nordestino, além de ser professor de literatura na Universidade Presbiteriana Mackenzie; a paraense Malcher é antropóloga, artista plástica e ganhou o prêmio Jabuti de literatura em 2021 na categoria contos com o livro Flor de Gume; já Fernanda Bastos é jornalista, poeta, editora na Figura de Linguagem e também uma das curadoras da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), um dos eventos mais consagrados na área e que começa essa semana.
Atualmente me parece que muito do que era tratado como literatura "regional" antigamente atualmente é considerado "brasilidade", embora sempre exista essa questão do local x universal, pensando aqui também no autor fora do eixo Rio-SP e do eixo Rio-SP. Como você observa essa questão?
Monique Malcher: É muito perigoso falar de brasilidades na literatura, me soa como se algumas coisas fossem Brasil e outras não. Me preocupa essa tentativa de tradução do que uma comunidade é para caber na visão do outro, e esse outro se vê muitas vezes como aquele que descobre, que dá voz. Como se nossas vozes não existissem ou precisassem de um salvador para contar nossas histórias, impasses, lutas. Não se compreende ainda sobre a diferença entre centros econômicos e centros culturais. A centralidade é pautada pelo capital, essa é a verdade. As noções territoriais estão atreladas aos olhares colonizados que construíram esse país.
Por isso nas artes também nos olham como os exóticos e/ou os que estão na moda. O que não enxergam é que desde sempre construímos não só os prédios, as ruas, a força de trabalho desse país, como construímos a história da palavra, da poesia que nos cerca. Estamos e somos faz um bom tempo, mas pensam que podem nos descobrir como se nossa existência tivesse gênese apenas no olhar que nos exotifica. Até quando seus livros vão se passar no norte? Uma vez me perguntaram. E posso afirmar que respondo essa pergunta quando ela for feita para outro autor assim: até quando seus livros vão se passar no centro de São Paulo?
Cristhiano Aguiar: Desde ao menos o romantismo, as ideias de local e regional, em nossa literatura, são colocadas como fundadoras daquilo que parte da nossa literatura e considerável fatia da crítica considerou como a nossa vocação literária primordial: construir, bem como revelar, a nossa identidade nacional. Assim, neste sentido, desde sempre o regional é considerado como um índice de brasilidade, a ponto de muitas vezes o local, na literatura, ser lido, em especial pela crítica, como uma obrigatória alegoria da nação como um todo.
É importante refletir sobre como cada época interpreta, para além da função de revelação da identidade nacional, o conceito de "regional". E com frequência o conceito de regionalismo é utilizado para reforçar um jogo de poder simbólico no qual produções culturais fora do eixo Rio-São Paulo são vistas como o que sobra da suposta universalidade produzida por este mesmo eixo. Assim, cabe à produção do "centro" a liberdade criativa e cosmopolita, ao passo que cabe a nós, nas margens simbólicas, papéis bem definidos que se resumem à afirmação da nossa regionalidade. Eu acho que devemos questionar com profundidade este jogo de poder, que muitas vezes é aceito acriticamente por nós mesmos, nós que não estamos no centro simbólico do poder cultural.
Faz sentido falar em regional? Depende dos termos do debate. Se eu usar regional como um contexto inicial de compreensão das particularidades culturais, sociais e históricas de uma obra, pode haver utilidade para o termo, em especial se a via for de mão dupla: por que o meu "oxe" deveria ser mais regional do que o "mano" paulistano, por exemplo?
Fernanda Bastos: O Sudeste segue sendo o espaço-tempo da autoria brasileira. Os autores e as autoras se sentem mais autores e autoras quando fazem lançamento no Rio de Janeiro e sobretudo em São Paulo. As editoras em que todos desejam publicar funcionam nessas localidades e também os veículos de comunicação que fazem a cobertura literária circulam em torno das pessoas que publicam por essas editoras e pelos autores e autoras que vivem nesse eixo. Mesmo que o mercado comece a ser cobrado a olhar para outros cantos do país, em geral há um desejo e uma pressão para que se viva lá, pois é onde estão as rodas de legitimação e a grande maioria dos trabalhos bem remunerados. Incluo o fator tempo nessa resposta, porque o espaço Rio-São Paulo também cria temporalidades.
Um autor de longa trajetória no Rio Grande do Sul, por exemplo, pode ser apresentado como uma novidade quando é publicado por uma editora do centro. E a estratégia publicitária de lançamento de novos títulos de antigos autores do underground pode desconsiderar as andanças anteriores dessas obras. São escolhas políticas do mercado, que aprendemos a fingir que são meramente técnicas. A FLIP navega por esses mares todos, tentando brechas, embora não seja possível viver isolado do impacto dos mecanismos do mercado editorial sobre autores, autoras, editoras, agentes, livreiros, etc. Com relação ao meu papel como co-curadora, tenho sempre olhado para o lugar de onde escrevem, onde vivem e por onde publicam os autores e as autoras, pois isso faz parte da trajetória editorial e artística que eles escolhem escrever.
Recebidos
- Dicionário Drummond, vários - O livro foi lançado no início do ano pelo Instituto Moreira Salles e reúne estudos sobre a obra do autor em forma de dicionário. O leitor encontrará verbetes que, em conjunto, buscam apresentar um quadro abrangente do vasto mundo do poeta. Assinados por professores, escritores e pesquisadores da obra do escritor, os verbetes tratam desde de livros (Alguma poesia, A rosa do povo, Claro enigma ou Lição de coisas), e poemas de Drummond (“Quadrilha”, “Poema de sete faces”, “No meio do caminho”, “Caso do vestido”, “A flor e a náusea” ou “A máquina do mundo”), até temas constantes em sua produção (ruína, amor, política, erotismo, política, guerra, Itabira, mineração, noite ou morte
- La Minuana, de Lucio Carvalho - Nesta novela, um pequeno clã remanescente das etnias originárias do sul brasileiro e do Uruguai busca por sua sobrevivência num mundo que se transforma radicalmente em guerras que se emendam umas nas outras. Perturbado pela doença e premido pela nova organização social, o clã desenvolve uma reação ao mesmo tempo de fuga e sobrevivência. O texto foi escrito em linguajar fronteiriço, tomando um tanto do português quanto do espanhol e alguns vocábulos de origem indígena, dos poucos que chegaram a ser atualmente conhecidos.
Em outras notas
- Em seu cartão de visita, Oliveira Silveira se definia como pesquisador da cultura afro-brasileira e escritor de literatura negra. Falecido no dia 1 de janeiro de 2009, o poeta, professor e intelectual, com grande trabalho dentro do movimento negro (foi um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra que, ironicamente, não é feriado no Rio Grande do Sul), deixou um legado vivo e que segue sendo objeto de pesquisas e influenciando novas gerações. Se você não conhece sua trajetória e trabalho, deveria. Convido a leitura dessa reportagem que realizei já há algum tempo. Nascido no distrito de Touro Passo, na Serra do Caverá, em Rosário do Sul, no Rio Grande do Sul, Oliveira fez uma poesia que refletiu sobre o seu tempo e que se mostra, cada vez mais, universal. Em um estado no qual a população negra foi invisibilizada durante muito tempo, é crucial conhecer e valorizar essa história.
- O escritor cearense Stênio Gardel ganhou o prestigiado prêmio estadunidense National Boow Award na categoria literatura traduzida com seu livro de estreia intitulado A palavra que resta, lançado pela Companhia das Letras, em 2021. É o primeiro brasileiro a ganhar tal reconhecimento. Segundo matéria do Diário do Nordeste, o autor não esperava o prêmio. “Daí a surpresa, que foi ótima de vivenciar também. Eu já estava bem feliz de estar entre os finalistas, com minha medalha e placa, ao lado da Bruna e do Michael (da editora New Vesse Press), e em Nova Iorque. Ganhar só deixou tudo mais especial ainda”, declarou. O livro narra a trajetória de Raimundo, homem analfabeto que na juventude teve o amor secreto brutalmente interrompido e que por cinquenta anos guarda consigo uma carta que nunca pôde ler.
- O Ministério da Cultura ampliou o número de selecionadas no Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres e também lançou a lista com o resultado preliminar da seleção. O número de escritoras premiadas saltou de 40 para 60, fruto do alto número de obras com ótima avaliação, em sua maioria, notas máximas. Com isso, o recurso inicial de R$ 2 milhões também aumentou, e passou a ser de R$3 milhões. O prêmio contou com um total de 2.619 inscrições. Destas, 1.922 foram aptas a serem avaliadas pela Comissão de Seleção. As classificadas são mulheres brasileiras (cis ou transgênero), bem como a comissão julgadora, composta apenas por pessoas do sexo feminino.
Apóstrofos
- Prêmio Jabuti divulga os finalistas da 65 edição, cinco por categoria. Veja.
- O 99º episódio do 451 MHz, o podcast da Revista Quatro Cinco Um, reúne o psicanalista Christian Dunker e a escritora e psiquiatra Natalia Timerman para conversarem sobre como a escrita ajuda a lidar com a morte e a dor da perda. Escute.
- Já leu a Cidinha da Silva? Tem crônica nova dela lá no site do Jornal Rascunho. Leia.
Extras
Segue a gente lá no instagram da Redemoinho. Segue também o Nonada Jornalismo. Publicamos semana passada uma matéria sobre o clube negro mais antigo de São Paulo, que segue em atividade promovendo cultura e resistência. Criado em 1897, sete anos após a abolição da escravatura, o Clube 28 de Setembro leva esse nome em referência a Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, que determinava que os filhos de escravizados nascidos a partir dessa data seriam considerados livres.
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