Redemoinho #18 - Trechos de entrevistas nunca publicados
Confira partes de conversas com os escritores Luisa Geisler, José Falero e Julia Dantas
Olá, pessoal, tudo bem? Como vão?
Dezembro é aquele mês em que a gente fica mais pensativo sobre o que fizemos no ano e sobre o que desejamos para o próximo. É um mês em que a reflexão ganha um espaço maior.
Bom, nesta edição - que ainda não é a última de 2023 - minha ideia é trazer trechos de entrevistas que fiz com várias escritoras e escritores ao longo dos últimos dois anos, boa parte delas devido à série de perfis de autores contemporâneos nascidos no Rio Grande do Sul que faço para o Jornal do Comércio de Porto Alegre, onde sou um freelancer ocasional.
A apuração é grande e SEMPRE sobra material bom. A “graça” da escrita também está na edição. Quantas outras histórias poderiam ser contadas de outras formas, não é verdade? Para quem tem interesse, disponibilizei um drive com os PDFs dos perfis, só clicar aqui. Estou fazendo mais um, que deve sair no fim do mês.
Todos os textos das entrevistas aqui foram mantidos na linguagem coloquial. Bom, vamos lá.
Luisa Geisler fala da criação de seus personagens e o que a motiva a começar a escrever (entrevista realizada em julho de 2023)
Eu vou pelo personagem. Os meus personagens todos estão sempre com essa sensação de não estar no lugar certo, na hora certa. Sempre tem alguma coisa meio desencaixada, sabe? Aquela peça do quebra-cabeça que precisou ser empurrada e que parece que não está no lugar certo. Então, todos os meus personagens são meio assim. ‘Eu não devia tá aqui, mas eu tô aqui’.
Eu tendo a criar uma jornada. Eu gosto de ter uma ideia de coisas acontecendo. Porque senão meu personagem vai ficar sentado monologando, sabe? Então, o que que pode acontecer? O que pode mover essa história tanto geograficamente, como geo simbolicamente, o que seja. E também fica mais fácil de explicar o que é o livro, sabe? Começa com o personagem, uma coisa pequena, que vou destrinchando e que se transforma num enredo. Eventualmente se transforma numa ideia de coisas acontecendo. Porque eu tendo a ser muito abstrata. Eu tendo a ser muito tipo assim: "É a dor da existência humana". Tá, mas como é que isso se apresenta no livro? Em uma história? Ah, a dor da existência humana se apresenta no fato de que o pai dele nem está sabendo onde ele está. Então, eu vou contra meu instinto abstrato para colocar em algo prático e que possa ser meu enredo.
Geralmente é um personagem. Eu penso em muitos personagens. Eu dou uma coisinha pra ele. Eu acabo estendendo isso para ser alguma coisa de enredo. Alguma coisa de factual. E aí eu vou criando universo, uma coisa que eu gosto muito é de criar um personagens coadjuvantes também, porque a gente precisa ter outra pessoa pra ‘bater’. Então, muitas vezes o teu personagem é absurdo, ele é sem noção e ele precisa ter alguém que diga pra ele que é sem noção. E tem uma coisa importante aí também que é a voz. Achar a voz do personagem me ajuda a pensar como ele pensa. E a pontuação. Como é que esse personagem pensa? Esse personagem pensa com muita vírgula? Com muito ponto final? Com parágrafos curtos ou longos? E isso me diz algo sobre esse personagem.
José Falero fala sobre encontro com Dalva Soares e sobre mudança na forma da escrita (entrevista realizada em junho de 2022)
Eu conheci a Dalva da seguinte maneira: teve um dia em que eu ia encontrar a minha irmã em uma oficina de samba no Africanamente [espaço cultural em Porto Alegre]. Minha irmã já frequentava várias paradas e a princípio eu não iria, porque eu era esse cara com esses problemas de convivência, só que por querer enfrentar isso, eu resolvi ir. Tu já leu Vila Sapo? Não sei se tu se lembra, mas eu começo o Otário com sorte, dizendo "contrariando todas as estatísticas, ontem eu resolvi sair da baia e fui dar um rolê. Fui ver a mana.” E aquilo ali é muito mais crônica do que conto, porque aconteceu da maneira que eu contei. No dia que eu fui, eu comecei a me fascinar com essas coisas absurdas do dia a dia, assim, então eu peguei o ônibus e de fato tinham dois piás, de fato aconteceu aquela história do relógio, desci do ônibus e o cara me pediu um cigarro, tudo igual. E quando eu cheguei lá para encontrar a minha irmã eu ainda falei para ela: “eu vou escrever sobre a minha vinda aqui”. E ela me perguntou, mas o que aconteceu de incrível aqui? Nada. Mas meu olhar hoje foi diferente para essas coisas e aí, no dia seguinte, eu escrevi Um Otário com Sorte e postei nas redes. E aí viralizou para os meus padrões, eu tinha 3 ou 4 curtidas nos meus posts até aquele momento, e aí teve uma trezentas reações, assim, e as pessoas comentaram muito. E casou de eu escrever isso em um momento em que eu estava mudando a escrita, até então eu escrevia apenas de maneira mais formal assim e por conta de uma conversa que eu sempre falo que eu tive com um linguista da Bahia, eu tava a fim de experimentar essa linguagem mais oral no texto e foi exatamente nesse dia a primeira oportunidade que eu fiz isso. E foi louco, eu fiquei assustado de tanta gente comentando, e os meus parceiro daqui dizendo “detesto textão do Facebook, mas comecei a ler esse teu e não conseguia parar”. E, porra, que louco, e comecei a pensar que isso era por causa dessa aproximação linguística, é como se a gente estivesse conversando, é como a gente conversa aqui.
Eu vi que isso tinha influência nas pessoas, e aí uma amiga minha, a Silvana Rodrigues, e aí ela conhecia a Dalva e marcou ela ali. E aí a Dalva achou o texto massa, comentou lá e tal, e aí a Dalva marcou um cara que é meu brother até hoje, um escritor de Salvador, o Evanilton Gonçalves, e ele inclusive escreve o prefácio do Vila Sapo depois. E aí ele marcou o Geovani Martins e ele comentou lá, e eu fiquei nossa que foda. E aí eu comecei a postar nessa linguagem. E aí eu e a Dalva começamos a conversar pelo messenger, depois o Whats, assim, mas eu tinha um celular muito vagabundo naquela época, raramente tinha crédito, e era um inferno para a gente se falar, mas começamos a nos falar assim. E aí ela começou a me colocar a par de um monte de coisas que eu era alienado, ainda sou. Aliás, a Dalva me pluga muito nas coisas até hoje assim, se não me falar eu não ficaria sabendo. Eu morei aqui a minha vida toda [Pinheira, em Porto Alegre], e nunca tinha ouvido falar em FestiPoa, por exemplo. Não sabia que existia, e aí a Dalva começou a me apresentar todo um universo de gente parecida comigo, escritores que tinham a ver comigo, a mesma origem social e tal.
Julia Dantas fala sobre o livro Ele se chama Rodolfo, escrito e lançado em 2022 (entrevista realizada em fevereiro de 2023)
A minha vontade era fazer uma road storie, uma narrativa de estrada toda dentro de Porto Alegre, ainda que na trama tenha os e-mails falando de outros países. Mas a minha ideia era que a peregrinação do livro fosse toda em Porto Alegre. Acho que um pouco porque eu tinha acabado de decidir ficar na cidade na época em que comecei a escrever, o que não era minha ideia inicial, e também queria fazer as pazes com isso. E também queria aproveitar aquela coisa de morar fora e voltar para tua cidade e ter um olhar meio estrangeiro. Depois de um tempo tu perde, e tu volta a ter o olhar daqui. E eu queria aproveitar que estava nesse momento. Ao todo, eu tinha passado uns três anos fora talvez, e Porto Alegre me causava um certo estranhamento, as pessoas me estranhavam também, o meu sotaque, quem me conhecia sabia que era um sotaque temporário, então eu tinha meio que um estranhamento o tempo todo na minha vida naquele momento. Quis fazer isso o meu melhor, então, vamos falar da cidade no livro com esse olhar que depois se gasta...Na época, eu lembro de ficar mais curiosa com as coisas. Hoje em dia eu já estou no automático de quem já está morando aqui há dez anos.
Recebidos - O Crime do Bom Nazista, de Samir Machado de Machado (Todavia)
Em O Crime do Bom Nazista, o escritor Samir Machado de Machado consegue condensar as melhores qualidades de sua trajetória literária: uma história densa recheada de aventura e mistério com uma pegada de crítica política/social. Tudo isso em um livro relativamente curto e claramente inspirado nas histórias de Agatha Christie e Arthur Conan Doyle.
A trama se passa a bordo de um zeppelin em 1933 que deixa Pernambuco em direção ao Rio de Janeiro. O dirigível é oriundo da Alemanha, onde pouco tempo antes Hitler foi elevado a chanceler. Narrado com afinco e segurança, a história volta e meia se confunde com a época em que vivemos, com o crescimento da extrema direita em todo o mundo, tendo seus exemplos bem pertos da gente, vide a recente Era Bolsonaro. Várias das falas de nazistas do livro, inclusive, parecem ser retiradas da boca de alguns funcionários do ex-governo brasileiro.
Mas é o modo como a trama é apresentada que cativa, além do mistério do assassinato, as personagens são interessantes - algumas tão desprezíveis que você fica só esperando que, de alguma forma, elas se deem mal - e, talvez, a grande invertida desse livro é o quanto essas personagens podem surpreender. Elegantemente escrito, O Crime do Bom Nazista pode ser também uma ótima porta de entrada para a literatura de Samir Machado, que merece ser ainda mais lida e conhecida.
Em outras notas
- Aconteceu na terça-feira (5 de dezembro), a cerimônia do 65º Prêmio Jabuti. O livro do ano foi Engenheiro Fantasma, do poeta Fabrício Corsaletti, editado pela Companhia das Letras. O vencedor da nova categoria do Jabuti, Escritor Estreante, foi o livro Extremo oeste, de Paulo Fehlauer (Cepe Editora). Na categoria Fomento à leitura, quem venceu foi o Álbum Guerreiras da Ancestralidade do Mulherio das Letras Indígenas. Confira toda a lista aqui.
- Uma morte marcou a cultura brasileira na semana passada, o intelectual Nêgo Bispo faleceu no dia 3 de dezembro aos 63 anos. Ele era uma das maiores referências do movimento quilombola, sendo também poeta e autor de livros como: A terra dá, a terra quer (Ubu, 2023) e Colonização, quilombo: modos e significações (Unb, 2015). Em outubro, o Nonada cobriu a mesa “Confluência e Escrevivência, muito mais que rimas”, na Feira Literária das Periferias do Rio de Janeiro (FLUP), em que ele participou ao lado de Conceição Evaristo. Lá, Bispo lembrou que as pessoas precisam conhecer seus antepassados para compreender o presente e seus possíveis privilégios. “Em uma pergunta que vibra com uma resposta, ele indaga: ‘Se você souber o que os seus ancestrais estavam fazendo antes da lei áurea, porque a minha eu sei. Se você souber e quiser conversar comigo sobre isso, quem sabe você pode ser uma contracolonialista’.” Confira a matéria completa.
- Em 2027, o Chile será o convidado de honra da tradicional edição da Feira do Livro de Frankfurt. Conhecido por ter um dos céus mais limpos do hemisfério sul, o país terá o tema “Pelos céus claros da literatura”. Com isso, o Chile se torna o quarto país latino-americano a apresentar sua literatura e cultura como país convidado da feira do livro, depois das apresentações do México (1992), Brasil (1994 e 2013) e Argentina (2010). Um dos objetivos desse programa é aumentar o número de traduções do país convidado para o alemão e outros idiomas. Em 2024 (16 a 20/10), o país convidado de honra será a Itália. Em 2025, as Filipinas, seguidas pela República Checa em 2026.
- Uma matéria muito bacana no site Lunetas sobre livros infantis que ajudam a desfazer preconceitos com pessoas em situação de rua. A matéria foi escrita pela repórter Laís Barro Martins e reflete sobre como crianças aprendem com os adultos a ignorar a presença de quem vive nas ruas. Para explorar esse sentimento tão conhecido, mas que sem nome fica difícil explicar, autores de livros infantis começam a falar mais sobre a aporofobia, que é a aversão a pessoas pobres. Confira a reportagem completa, que também é recheada com indicações de livros.
Apóstrofos
- Concurso Literário Escritores Admiráveis recebe originais de autores de não ficção. Aqui.
- A tradicional lista de melhores livros do ano da Revista Quatro Cinco Um já saiu. Veja.
- Sinéad Gleeson e Colombe Schneck, autoras que participaram da 21ª Flip, falam sobre aborto, direito ao corpo e escrita feminina. Leia.
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