Redemoinho #19 - Cartas, Memórias e Fantasmas: conheça a narrativa profunda de Mata Doce, de Luciany Aparecida
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Oi, pessoal, tudo bem?
É 20 de dezembro e ainda estamos aqui firmes e fortes (na verdade, já querendo o recesso desde o começo do mês). A news de hoje é um pouco mais enxuta, focando na resenha do Mata Doce, da Luciany Aparecida, e trazendo algumas notícias e indicações. Estou preparando um material especial para a próxima Redemoinho, ainda não sei se será ainda neste ano ou no começo do próximo! De qualquer forma, deixo aqui os meus desejos de um excelente 2024 para todos! Vamos lá, então.
Terminar um livro como Mata Doce (Alfaguara, selo da Companhia das Letras), de Luciany Aparecida, é sentir um misto de sentimentos florescer. Na história, Maria Teresa vive com suas mães em um casarão de frente para um grande lajedo de pedra, com um belo roseiral, em Mata Doce, um pequeno vilarejo no interior da Bahia. Mas chega a ser injusto dizer que o livro conta apenas a trajetória de Maria Teresa, quando temos uma protagonista que narra a vida e os costumes de diversos personagens do povoado.
Aparecida consegue articular a narrativa do livro de uma forma muito harmônica, costurando as idas e vindas da história, de modo que vamos descobrindo aos poucos e por diferentes caminhos como se deu sua vida, e, por extensão, a de Mata Doce durante quase um século. Um olhar melancólico, e muito singelo, paira por esses personagens atravessados por grandes e pequenas tragédias, muitas delas com origem no colonialismo e na violência, marcas que continuam ecoando na sociedade brasileira, sobretudo na população negra e indígena.
É preciso falar também no uso do duplo, principalmente na figura da protagonista Maria Teresa que acaba se “transformando” em Filinha Mata Boi devido a uma dessas tragédias citadas que a assombra por toda a vida. E como esse conflito acaba criando essas duas “personas” da mesma personagem que em certo momento do romance se chocam e precisam conviver, ou se entender melhor.
Com isso, não me aparece à toa o nome “Mata Doce”, como metáfora do espaço, dois nomes que parecem contraditórios: “Mata”, além do sentido óbvio, podendo ser lido também como uma ação do verbo matar e “doce”, por si só um sentido mais suave. Também sugerindo que nesse espaço beleza e violência andam juntos. E há ainda os dois sentidos da personagem principal, a doce Maria Teresa, que se torna a matadora de boi, Filinha.
Na contracapa do livro, há uma citação muito feliz da escritora Micheliny Verunschk em que ela diz que Mata Doce “é uma história de fantasmas, ou, antes, daquilo e daqueles que persistem em nós”. E isso acontece porque a própria narrativa da memória evoca essa sensação, esse tipo de sentimento de andar com “fantasmas”, ou de ver outras pessoas e lembrar/confundir com alguém do passado, e isso vale para objetos/animais/lugares também. A cachorra Chula exemplifica isso de forma brilhante, sendo lembrada/vista por diversas gerações.
Sabiamente, Aparecida também utiliza o recurso da escrita de carta durante o romance, trazendo esse outro formato de texto de registro para a obra causa alguns dos momentos mais emocionantes do livro, porque esse ato para a maioria das personagens que compõem aquele povo é guardar seus fantasmas, seus medos, suas inseguranças, suas bonitezas e também suas histórias abafadas, nunca contadas.
Pode-se traçar aí também um paralelo com a história da população negra ou indígena que têm sua memória pouco registrada no sentido de arquivos, mas que possui também outras formas de realizar essa ação, principalmente a partir da oralidade. Talvez por isso também durante o livro às vezes a narração mude de terceira pessoas para primeira pessoa, mas sem nunca confundir o leitor, pois a linguagem é uma força motriz do enredo.
Há muito do que ser dito sobre os diversos personagens marcantes, como as mães de Maria Teresa/Filinha: a professora Mariinha e a travesti Tuninha, um bonito amor que Aparecida trata com muito carinho; há Lai, a madrinha que também guarda um segredo para a protagonista; Mané da Gaita, um músico que alegra boa parte da história sempre que está presente; o coronel Amâncio, branco, antagonista da história e um personagem quase caricato em sua maldade, mas que aqui é necessário, porque ele acaba representando toda a opressão que aquele povoado vive. Antônio, Zezito, Thadeu, vários outros…E todos eles não são esquecidos, suas histórias são abordadas pela autora e se não tem um “sentido” de conclusão, pelo menos sabemos que podem estar por aí em qualquer lugar, continuando suas trajetórias.
Aparecida é muito feliz por escrever uma personagem tão fascinante quanto Maria Teresa/Filinha é. Muito complexa, ela carrega essa tradição importante que é contar. Há ainda uma bela homenagem ao livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, na última parte da história, que reforça a valorização do ato de ler e de se ver na leitura. E o que é contar se não tentar iluminar lembranças embaralhadas pelo tempo? Ler Mata Doce é se perder nesse fio bonito, corajoso e violento que forma a história dos povos que compõem o Brasil.
Em outras notas
- Diante da ausência de materiais didáticos adequados sobre a cultura e a história dos povos originários nas escolas, algumas iniciativas individuais de espaços culturais, assim como a direção e o corpo de certas instituições de ensino, buscam convidar escritores indígenas para proferir palestras, conforme relata o Nonada. O propósito é preencher a lacuna deixada pelo Estado em relação a esse tema. Olivio Jekupé, indígena Guarani e residente na aldeia Kakané Porã, em Curitiba (PR), autor de obras como "O Saci Verdadeiro" (2000) e "Literatura Nativa em Família" (2020), frequentemente é chamado para participar de encontros destinados a educadores. Ele destaca: "Os professores acabam prestando atenção na nossa palestra para também entender um pouco sobre a nossa cultura através da literatura". Leia aqui.
- Ainda há tempo de celebrar o centenário de Italo Calvino. O Jornal Rascunho publicou mais um artigo sobre sua obra. “De fato, para Calvino, entre as infinitas razões pelas quais a literatura não pode ser autossuficiente, está a da fundamental necessidade de cooperação do leitor. Para o crítico italiano Mario Barenghi: “Nenhum escritor contemporâneo refletiu, como ele, tão extensa e produtivamente sobre o papel do leitor”. O leitor em quem pensa é ativo, responsável e idealmente superior ao próprio escritor. A esse respeito, vejamos a seguinte reflexão, inserida no ensaio Por que se escreve?. Confere aqui.
- Uma carta aberta de professores universitários e críticos foi lançada recentemente tecendo fortes críticas à Fuvest e a escolha de apenas autoras femininas como leitura obrigatória para o vestibular nos próximos anos. Outros intelectuais e escritores, como Antonio Prata, também se manifestaram contra a ideia. Particularmente, acho que há um excesso muito grande por parte dessa carta e de outras manifestações. As pessoas não vão parar de ler literatura feita por homens apenas porque não há nenhum indicado no vestibular da Fuvest. Isso passa, mais uma vez, também pelo egocentrismo de boa parte da intelectualidade paulista, que se vê como “universal” no País.
Apóstrofos
- O escritor Amilcar Bettega está com inscrições abertas para o seu grupo de escrita e de leitura, o Escrevelendo. Eu participo desde o início do ano e indico muito. Para mais informações entre em contato pelo e-mail escrevelendo88@gmail.com ou mandando mensagem no instagram do autor.
- Uma seleção de 39 lançamentos de literatura em língua francesa publicados no Brasil em 2023. Feita pela Quatro cinco um. Aqui.
- O 8º Prêmio Kindle de Literatura anunciou os finalistas, veja quem são eles.
Extras
Comentei aqui com vocês, leitores, que o Nonada esteve em Campinas fazendo o projeto Comunica - Potencializando Culturas Locais, e agora estamos colhendo os frutos desse projeto. Em Campinas, rola o lançamento do documentário “Bene, o Poeta Negro”, no qual o Mestre Bene de Moraes, um importante agente cultural da cidade de Campinas, compartilha suas memórias. Produzido pela turma do projeto, o documentário será lançado em evento no dia 22 a partir das 19h na Estação Cultura de Campinas. No dia 3 de janeiro, o material estará disponível no YouTube do Nonada para que todos possam assistir.
Se você veio até aqui, meu muito obrigado por ler a Redemoinho! O que você achou? O que gostaria de ver por aqui? Se gostou, compartilhe com amigos!