Redemoinho #21 - Erico Verissimo também foi um grande escritor de cartas
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, pessoal! Como vão?
Se você não é de Porto Alegre, é difícil explicar o que aconteceu por aqui nos últimos dias depois da tempestade que atravessou a cidade na terça-feira passada, 16 de janeiro. Foi realmente uma bomba de água e de vento que derrubou diversas árvores, inundou trajetos da cidade e deixou muita gente sem saber o que fazer da vida.
Os governos estaduais e municipais por aqui não têm planejamento para esse tipo de evento e a empresa de fornecimento de energia elétrica recentemente privatizada faz um péssimo trabalho. O resultado é que têm muitas pessoas sem luz até agora, uma semana depois. Esses eventos climáticos serão, infelizmente, cada vez mais comuns e debater o que fazer em todas as áreas é cada vez mais necessário. Com isso, também pensamos aqui no Nonada em entrar nessa importante discussão criando a editoria de Clima e Cultura no nosso site. Ainda há um caminho árduo pela frente para que a cultura seja de uma vez por todas considerada um ator mobilizador - e para isto, também precisa assumir seu papel como mitigador dos impactos. Um exemplo é a busca de alternativas sustentáveis ao uso de combustíveis fósseis em geradores de energia, muito usados em eventos culturais.
Aliás, para quem é de Porto Alegre, na próxima quinta-feira, dia 25 de janeiro, vamos lançar a nossa segunda revista impressa, que também tem o foco na intersecção entre cultura e mudanças climáticas. Vai ser na Livraria Paralelo 30 (R. Vieira de Castro, 48), a partir das 19h, onde vai rolar uma conversa também com a presença do arte-educador Caio Paixão, com a jornalista Priscila Pasko responsável pela matéria principal tema da revista e com a Silvia Lisboa, diretora de jornalismo da Matinal Jornalismo.A revista terá distribuição gratuita, confere os pontos lá no nosso Instagram.
Mas o que isso tem a ver com o tema da nossa newsletter você pode estar se perguntando? Bom, eu nunca consegui planejar bem essa edição devido aos impactos do temporal, então, tive que “requentar” uma matéria que fiz há um tempo atrás. Então, é isso, as mudanças climáticas vão afetar todo mundo, de alguma forma. É preciso ficar atento.
Entre os escritores mais conhecidos do Brasil, Erico Verissimo é lembrado como grande romancista, responsável por obras formadoras e de cunho histórico que refletem até hoje as vicissitudes do ser humano e suas complexidades no tempo. Há, entretanto, uma faceta ainda pouco conhecida do grande público: ele também foi um grande escritor de cartas.
O seu acervo no Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, conta com 2.244 itens nessa área, e inclui não apenas as recebidas pelo escritor, mas também as cópias das cartas enviadas por ele. “Nelas, ele costumava relatar sua rotina, principalmente em viagens, funcionando como diários, o que as torna especialmente interessantes”, explica Rachel Valença, coordenadora de Literatura do IMS. A professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini, que se debruça sobre o trabalho de Erico desde os anos 1980, diz que ele era consciente da importância de interagir não só através da ficção. “Escrevia tanto para seus colegas de ofício, principalmente os iniciantes que lhe pediam conselhos sobre criação literária quanto para seus admiradores, que lhe expressavam os efeitos de sua literatura”, diz. Entre algumas das trocas, estão as correspondências com escritores como Sergio Faraco e Lygia Fagundes Telles, então iniciantes no ofício, mas também com personalidades mais experientes, como Josué Guimarães.
Para Marcos de Moraes, doutor em literatura pela Universidade de São Paulo e um especialista no estudo a partir das correspondências, a primeira contribuição para se pensar em termos de uso da carta é que elas podem dar uma visão complementar do autor. “Ou seja, a literatura não mais como resultado final do objeto livro, mas enquanto processo”, afirma. O professor já ganhou dois prêmios Jabutis pelos livros “Câmara Cascudo e Mário de Andrade – cartas 1924-1944” e “Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira”, há três dimensões neste tipo de pesquisa: a biográfica, a criação compartilhada e a invenção da sociabilidade. A primeira, seria a pesquisa focada na vida e na interpretação do autor sobre a própria obra e trajetória. O estudo da criação compartilhada a partir da troca também é um ponto importante. “Ela parece ser o grande fator que faz repensar a autoria e a literatura como um diálogo, como um espaço de alteridade, no momento que se insere o outro no processo de criação”, explica Marcos. Já a sociabilidade seria a rede de contatos mais frequente e os laços que foram construídos.
Apesar de as cartas de Erico não terem uma grande compilação, alguns estudos de diferentes pesquisadores já foram realizados sobre as epístolas. “Não foi possível recuperar todas as missivas”, diz Maria. Ela explica que muitas vezes o escritor não guardava cópias. Organizá-las é um desafio dos pesquisadores que se debruçam ao estudo das cartas, porque muitas vezes elas estão espalhadas por diferentes arquivos, ou em posse de outras pessoas. Uma rápida pesquisa no site Mercado Livre, por exemplo, aponta que uma carta assinada por ele está sendo vendida por R$500.
Mesmo assim é possível notar as sociabilidades mais frequentes com alguns autores. “Um correspondente frequente foi Herbert Caro, o tradutor de Thomas Mann, a quem enviou muitas dos Estados Unidos, assim como Vianna Moog, amigo desde os tempos da Globo. São cartas sobre o que fazia e sentia então. Há cartas para Clarice Lispector, também dessa época, que foi quando a amizade entre os dois se iniciou”, diz. Em 1956, inclusive, em carta, Clarice Lispector convida Erico e Mafalda para serem padrinhos de seus filhos, Pedro e Paulo, três anos após o nascimento do segundo. “No caso dos senhores não aceitarem, no hard feelings. Mas a verdade é que, por três anos, vocês têm sidos os padrinhos deles, por tácito, espontâneo e comum acordo. Restaria apenas legalizar uma situação que aos poucos estava se tornando escandalosa”, escreveu Clarice. A proposta foi aceita.
A carta era central na geração do autor da trilogia O Tempo e o Vento. Segundo Moraes, outros escritores da época como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos atribuíram um valor muito importante ao formato, porque por meio dela defendiam os ideais estéticos da época e a própria noção de literatura. “O Erico, como todos da geração dele, escritores, se valeram da correspondência como forma espiritual de vida, ou seja como sociabilidade, como espaço de transmissão de uma percepção literária”, afirma.
Socialista democrata
Em uma carta do ano de 1968, Erico que estava visitando a sua filha Clarissa nos Estados Unidos escreve ao seu filho, o escritor Luis Fernando Verissimo, sob o impacto da invasão militar da Tchecoslováquia por tropas da então União Soviética. Esse foi um movimento que acabou com a chamada “Primavera de Praga”, que, em termos gerais, pretendia reduzir a influência de Moscou e implantar um ‘socialismo de face humana’ no país. Erico fez questão de se manifestar em relação à invasão. Ele escreveu: “A invasão da Tchecoslováquia me deixou consternado e indignado ao mesmo tempo. Há dias que ando pensando em fazer alguma coisa e não consigo descobrir o quê”. E, continuou, fazendo um pedido ao filho: “Se apareceu ou está para aparecer no Brasil algum manifesto de escritores, a teu critério decente, isto é, sem coronéis da nossa democracia nem fascistas ou gaviões do Vietnã – autorizo-te a incluir meu nome nesse manifesto”.
Perguntando sobre a carta, Luis Fernando Verissimo diz que recordava dela, mas não do que realmente aconteceu depois. “Lembro-me da carta do pai mas confesso que não me lembro da consequência, se houve alguma, do posicionamento dele ou se saiu algum manifesto como o que ele pretendia assinar. A posição dele, que sempre se definiu como um socialista democrático contrário a qualquer tipo de totalitarismo, foi coerente. Ele e minha mãe tinham estado em Praga durante a breve ‘primavera’ que os tanques soviéticos reprimiram, e se apaixonado pela cidade”, respondeu.
Matéria publicada originalmente no Jornal do Comércio em 2020
Em outras notas
- No dia 15 de janeiro, o Nonada cobriu a Conferência Temática Cultura e Educação que elegeu o incentivo à bibliotecas públicas e escolares como prioridade para a formulação de políticas públicas que integrem ambos os setores. As propostas foram escolhidas em votação online por mais de 400 pessoas que participaram da conferência. As diretrizes escolhidas serão levadas para nova votação na Conferência Nacional da Cultura, com data marcada para março, em Brasília. No evento, os participantes vão eleger presencialmente metas e objetivos relativos a diversas áreas do setor cultural para serem cumpridos pelo poder público nos próximos anos. Saiba mais aqui.
- O Ministério da Cultura (MinC) decidiu ampliar em mais 12 vagas o número de escritoras negras selecionadas no Edital Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023. A quantidade total de premiadas passará de 61 para 73 escritoras, visando dar maior eficácia ao Programa Federal de Ações Afirmativas. A decisão vem depois que o coletivo de autoras "Nós, Carolinas do Brasil" lançou uma carta aberta na qual diziam que o sistema de cotas havia sido mal aplicado na premiação.
- O episódio mais recente do podcast da PublishNews traz profissionais do livro falando sobre suas impressões iniciais do mercado editorial para 2024, e as expectativas para diversos outros assuntos da área. Participaram Lizandra Magon de Almeida, Presidenta da Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) e Diretora editorial na Editora Jandaíra; Ricardo Perez, Country Manager Books da Amazon, Adriana Alcântara, Country Manager Brazil da Audible; Joana de Conti, Head Of Account Management na Bookwire; Daniela Kfuri, Diretora de Marketing e Vendas na HarperCollins Brasil; Luciana Borges, Diretora Comercial no Grupo Companhia das Letras; e Marcus Teles, presidente da Livraria Leitura. Escute aqui.
Apóstrofos
- Matéria da Revista Piauí diz que mercado de livro tem queda depois de boom na pandemia. Leia aqui.
- Prêmio Alta Books tem inscrições até 25 de fevereiro e podem se inscrever autores estreantes e não estreantes. Vai lá.
- Na Quatro Cinco Um, texto de Xico Sá sobre as correspondências de Charles Bukowski, trinta anos depois de sua morte. Confere.
Extras
Lá no Youtube do Nonada Jornalismo já está disponível o curta-documentário que produzimos dentro do projeto Comunica - Potencializando Culturas Locais com os participantes de Campinas. Líder cultural e comunitário, o mestre Bene de Moraes relembra as principais memórias de sua vivência no movimento negro e na cultura popular desde a época de ditadura militar até os dias atuais. Clica aqui para assistir. Também temos a versão em libras.