Redemoinho #22 - Terra fresca (de carnaval e dos bons contos) de Giovanna Rivero
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, tudo bem?
Então, é quase carnaval, ninguém aguenta mais trabalhar, o calor já queima os nossos neurônios, mas estamos aqui tentando elaborar pensamentos. Lembrei de uma carta do Mario de Andrade para o Manuel Bandeira em que o paulista se desculpa por não ter conseguido visitá-lo, pois foi “arrastado” pelo carnaval carioca.
“Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… Que delícia, Manuel, o carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu carnaval! Se estivesses aqui, ao meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão”, escreveu.
Se alguém quiser ler a carta completa, ela está no Correio IMS, um dos melhores sites da internet brasileira. Fica a dica do grande Mario Andrade para esse carnaval!
Ontem, terça-feira, 6 de fevereiro, foi meu aniversário, completei 36 anos e a gente sempre fica reflexivo nessas datas que têm pulsão de vida e de morte, aquela coisa do tempo passando. Mas gosto de envelhecer, de ver como tudo se modifica. E gosto de fazer aniversário nessa época, perto do carnaval, de algo tão simbólico.
Penso isso também porque terminei de ler recentemente o livro Terra fresca da sua tumba, da escritora boliviana Giovanna Rivero, lançado por aqui em 2021 e que merece ser ainda mais conhecido e apreciado. Por isso também resolvi trazer nesta edição comentários sobre os seis contos que compõem a obra, todos girando em torno de “mortes”, entre aspas, porque há diversos sentidos.
Antes, um pouco de contexto, Rivero esteve aqui em Porto Alegre, da onde escrevo, em uma mesa na Feira do Livro da cidade em novembro passado, que foi mediada pela também ótima escritora Irka Barrios. Na época, ainda não tinha lido Terra fresca da sua tumba, o seu primeiro - e até agora único, acredito - publicado no Brasil. A escritora, entretanto, já tem uma longa e premiada carreira. É autora dos livros de contos Las bestias (1997), Prêmio Municipal de Santa Cruz; Contraluna (2005); Sangre dulce (2006); Niñas y detectives (2009); e Para comerte mejor (2015), Prêmio Dante Alighieri. Publicou quatro romances: Las camaleonas (2001); Tukzon (2008); Helena 2022 (2011); e 98 segundos sin sombra (2014).
Em 2004 a autora participou do Iowa Writing Program e em 2007 recebeu a bolsa Fulbright. Em 2005 obteve o Prêmio Nacional de Contos Franz Tamayo e, em 2015, o Prêmio Internacional de Contos Cosecha Eñe. A Feira Internacional do Livro de Guadalajara de 2011 incluiu Rivero na lista dos “25 Segredos Literários Melhor Guardados da América Latina”. Atualmente ela mora nos Estados Unidos, e acho que isso também diz muito das suas histórias, principalmente nesses contos. Vou fazer algo que não tenho muito costume, que é dividir pequenos comentários pelas histórias curtas, já que são poucas - porém extensas. Vamos lá.
Peixe, Tartaruga, Urubu
É costume dizer que se deve colocar o melhor ou o mais impactante conto no início do livro para já capturar o leitor, e parece que essa dica foi levada a sério por Rivero. Trata-se de uma trama aparentemente simples, na qual um sobrevivente de um terrível naufrágio relata para a mãe do seu colega morto no incidente o que de fato aconteceu. No caso, eles passaram um bom tempo à deriva no mar, tendo que se alimentar, quando possível, de qualquer coisa que aparecesse. Revelado para o leitor aos poucos e em dois tempos: a conversa em primeiro plano, entre a mãe desconfiada e atenta e o personagem que sobreviveu o qual ela ironicamente, alimenta, servindo comida durante o seu relato; e no passado, no depoimento bem ambientado, sofrível, dos dias no oceano. Não tem como saber exatamente o que aconteceu no passado, a sugestão do macabro está ali, mas no presente as coisas aparentemente ficam mais claras ao fim do conto. Uma aula de escrita.
Quando chove parece humano
Aqui, Rivero já começa a mostrar uma característica que vai permear algumas outras histórias do livro, pelo menos as mais longas, a capacidade de aprofundar na personagem e realmente nos fazer ver o mundo com seus olhos, passando várias páginas nos apresentando seus medos, trejeitos e passagens de vida que, sabiamente, vão se conectando e revelando, então, de fato a história. É o caso aqui da personagem principal, a senhora Keiko, descendente de japoneses, que vive na Bolívia, que cultiva um jardim, dá aula de origami para presidiárias e está alugando o quarto para uma estudante. As coisas aparentemente não têm conexão, mas a partir do forte controle narrativo uma imagem horripilante vai se construindo.
A mansidão
Narrado em diferentes atos, essa história ficcionaliza um crime real que aconteceu em uma comunidade religiosa radicada na Bolívia. Aqui, a autora traz a perspectiva de uma das vítimas. A personagem é a adolescente Elise que engravida após sofrer a violência sexual, a história toda é permeada pela autoridade imposta pela comunidade religiosa e, por isso, o fechamento da história é surpreendente, em certo sentido. Expurgo, vingança e oração.
Socorro
Mais um conto que vai se deslanchando devagar, Rivero é mestre em apontar caminhos para as histórias e percorrer uma outra estrada mais longa só para voltar, perto do final, àquele caminho que foi aberto no início. Aqui uma mulher retorna de férias para a casa da mãe que vive com a irmã, a quem a família atribui ter “transtornos mentais”. Com uma narração em primeira pessoa, observamos a protagonista, uma cientista-pesquisadora, que cria imagens marcantes a partir de descrições minuciosas sobre a sua tia, uma visão rancorosa a princípio, mas que vai se transformando conforme a narrativa avança no tempo e acontecimentos do passado voltam à tona. Mais uma personagem, assim como todas outras da obra, afetadas por um tipo de deslocamento, um não-pertencimento.
Pele de asno
O conto mais extenso do livro também é o que trabalha com mais afinco os traços de deslocamento presentes na obra, aqui relacionando com questões indígenas. Ele é narrado em primeira pessoa, em uma espécie de relato religioso, uma vez que a narradora está rememorando acontecimentos de sua vida para uma plateia de uma igreja de fiéis onde ela é, aparentemente, uma reconhecida cantora gospel. A história é protagonizada por ela e seu irmão, dois jovens órfãos bolivianos que migram para o interior do Canadá e ficam sob a responsabilidade de uma tia alcoólatra. A casa é afastada da cidade e eles se aproximam dos métis, um povo nativo canadense. Todo o relato está permeado por uma aura de assombração uma vez que há uma espécie de tumor raro descoberto pela protagonista e que em breve ela operará. Esse tumor que existe desde sua infância e só foi descoberto recentemente pode mexer também nas suas percepções de realidade, então, não se sabe o quão verdadeiro pode ser todo o relato. Apesar de passagens interessantes, mais perto do fim, principalmente, com a entrada de mais personagens fora ela, o irmão e a tia, a história acaba demorando para engrenar e não é uma das mais memoráveis do livro.
Irmão cervo
Na história, um casal boliviano morando nos Estados Unidos tem dificuldade para sobreviver, mesmo ambos sendo acadêmicos com doutorado. O homem acaba virando uma espécie de cobaia humana, sendo explorado em pesquisa, para o casal ter uma verba financeira recorrente. Ao mesmo tempo, a mulher trabalha como caixa em um Walmart e encontra um cervo morto que está em estado de decomposição no pátio da casa em que moram. Mais uma vez, Rivero traz descrições ardilosas sobre os efeitos dos remédios e dos testes no corpo-território do marido, como se tirassem toda a humanidade dele. Já o animal, apesar do estado putrefato, vai ganhando contornos carinhosos na visão da mulher. A exploração no capitalismo em sua forma mais pura.
Em outras notas
- Uma boa notícia: o projeto Estudos em Escrita Criativa Social vai oferecer formação gratuita a vinte jovens entre 18 e 26 anos que estejam em situação de vulnerabilidade social. Os participantes devem ser residentes em Recife ou na região metropolitana da capital de Pernambuco. A ideia e a coordenação do projeto são da escritora Patricia Tenório. O curso é composto por aulas e oficinas mensais, de fevereiro a dezembro de 2024. As candidaturas, juntamente com o envio da documentação, podem ser feitas até o dia nove de fevereiro, por meio de formulário virtual. A lista de selecionados deve ser divulgada até o dia 20 deste mês. Saiba mais aqui. Ajude a divulgar para quem precisa!
- Tradicional premiação brasileira, o Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, vai ganhar uma versão acadêmica. Prevista para estrear em 2024, a honraria tem como objetivo destacar as publicações científicas, técnicas e profissionais, preenchendo uma lacuna até então presente na premiação tradicional. O físico Marcelo Knobel, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), será o curador desta primeira edição. Os livros elegíveis para concorrer ao Jabuti Acadêmico serão obras de autores brasileiros ou residentes no país, publicados ao longo do ano de 2023. Confira mais informações no site da premiação.
- Saiu uma entrevista muito legal no Nonada Jornalismo com o professor, pesquisador e escritor Luiz Rufino. Essa conversa foi publicada primeiramente na nossa revista impressa, inclusive, já disponibilizamos ela online aqui. Rufino é autor de diversos livros, entre eles, Pedagogia das Encruzilhadas , Vence-Demanda: educação e descolonização e o mais recente Ponta-Cabeça: educação, jogo de corpo e outras mandingas. Em parceria com o historiador Luiz Antonio Simas, também já escreveu Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas e Flecha no Tempo, sempre na interlocução entre os saberes afro-brasileiros e a educação.
- Tem um texto bem interessante sobre a Hilda Hilst no site do Itaú Cultural, em lembrança dos 20 anos de sua morte, completados agora no dia 4 de fevereiro. O autor André Bernardo traz a opinião de especialistas sobre a obra da autora e o seu legado. “Ainda hoje, a jornalista e escritora Carla Mühlhaus não se recuperou do espanto que sentiu, aos 15 anos, ao ler uma entrevista de Hilda Hilst na revista Marie Claire. Anos depois, veio a descobrir que realmente era. O tal planeta, no caso, era Marduk. Um corpo celeste imaginário onde morariam figuras ilustres da literatura, como o escritor francês Júlio Verne, e da ciência, caso do físico alemão Albert Einstein”. Leia aqui.
Apóstrofos
- Editora da UPFR está recebendo originais ou propostas de tradução de qualquer proponente. Aqui.
- A amizade entre dois nomes em destaque da literatura brasileira contemporânea e a experiência em uma oficina de escrita são os temas desse episódio do podcast 451 MHz, da Quatro Cinco Um. Escute.
- Cidinha da Silva escreve sobre seu encontro com Angela Davis em crônica no Jornal Rascunho. Leia.
Extras
O Nonada lançou recentemente o relatório anual, com as realizações do ano de 2023. Foi um período transformador, além do projeto Comunica, na área do jornalismo, abordamos temas como culturas populares, direitos trabalhistas na cultura, comunidades tradicionais e as relações entre cultura, clima e educação. Nossas matérias foram citadas por pelo menos 16 artigos acadêmicos, além de manuais do professor, catálogos de exposição e ementas de disciplinas. Também contratamos mais de 40 profissionais ao longo de 2023, entre jornalistas e outros trabalhadores, contribuindo para movimentar o setor.
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