Redemoinho #23 - Tecendo narrativas do norte: autores e autoras buscam mais espaço na cena literária
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, pessoal, como estão?
A Redemoinho está recheada hoje. Temos uma reportagem bem apurada que aborda a diversidade de autoras, autores e editoras da região norte, escrita pela freelancer Nicoly Ambrosio para a Redemoinho e para o Nonada direto de Manaus! Um texto de qualidade e extenso, por isso colocarei uma parte dele nesta edição e o link para a publicação completa no site.
Outra boa notícia para 2024: Fomos selecionados em um dos editais da Lei Paulo Gustavo aqui no Rio Grande do Sul! E é um projeto pelo qual tenho muito carinho, ele envolve a cena literária regional. Em breve trarei mais informações.
Antes de entrarmos no conteúdo especial, tenho que fazer uma correção em uma informação da edição passada da news. Quem me avisou foi o Bruno Mattos, que já apareceu por aqui com o livro Pequeno Dicionário de Etimologia Alternativa. Ele me lembrou que a Giovanna Rivero também já foi publicada no Brasil pela Peabiru, com o livro Pra te comer melhor. Eu tinha comentado equivocadamente que Terra fresca da sua tumba, da Incompleta lançado em coedição com a Jandaíra, era o único publicado por aqui.
Vamos lá, então. Boa leitura!
Texto de Nicoly Ambrosio
O Nonada Jornalismo ouviu autores da região Norte, que relataram suas trajetórias diversas, as dificuldades e os desafios em produzir literatura. Entre os assuntos abordados, estão o processo de criação, a dificuldade de circulação das obras, o trabalho das editoras locais e reflexões sobre preconceito que muitos escritores da região costumam sofrer.
Como disse em entrevista anterior a escritora Monique Malcher, ganhadora do Jabuti com o livro de contos Flor de Gume: “Estamos e somos faz um bom tempo, mas pensam que podem nos descobrir como se nossa existência tivesse gênese apenas no olhar que nos exotifica. Até quando seus livros vão se passar no norte? Uma vez me perguntaram. E posso afirmar que respondo essa pergunta quando ela for feita para outro autor assim: até quando seus livros vão se passar no centro de São Paulo?”.
Escritora das ruas, Márcia Antonelli não hesita em dizer que gosta do contato com as pessoas quando está vendendo seus livretos em andanças pelo centro de Manaus, capital do Amazonas, onde nasceu e foi criada. “Olhar nos olhos delas, poder falar diretamente a elas sobre a obra”, descreve. É assim que a autora, notável figura do cenário literário manauara desde os anos 1980, faz o “exercício da observância” que guia seu processo de escrita, pavimentado pelo cotidiano urbano da cidade.
Autora de crônicas, contos, novelas, ensaios, prosas e haicais, estilo de poesia de origem japonesa que consiste em um poema curto, a escritora aborda, além da urbanidade de Manaus, o erotismo, a violência da cidade e realismo fantástico. “Manaus é uma cidade que me inspira muito. Seu fluxo, sua contradição, seus tipos humanos, sua misticidade”, explica.
Em Manaus, a obra de Antonelli mostra o “lado b” da cidade, “a crueza do asfalto e da vivência das pessoas da periferia”, enfatiza a autora. Longe do “cancro do bucolismo”, um aprisionamento à estética ou ao discurso do regionalismo amazônico, que dita como e sobre o que escritores da Amazônia devem escrever, a autora pensa a cidade de Manaus por um viés urbano. A escritora foi responsável pela criação da Revista Sirrose, uma publicação que, durante 11 edições, reuniu escritores e poetas que produziram literatura considerada subversiva e marginal.
Contudo, ela afirma que o maior desafio de ser escritora em Manaus é a carência de lugares, mesmo nos bares e praças, para transitar e entrar com a sua literatura, que hoje a sustenta. “Há uma cultura escrota aqui nessa cidade que é de cercar os bares e impedir que os artistas circulem, divulguem e vendam suas obras literárias ou qualquer outro tipo de arte. O público é receptivo. Mas essa política cultural é hedionda. Ela nunca está (e nunca esteve) do lado do artista, mas dos empresários”, denuncia.
Para ela, essa “política de atraso cultural” é recorrente na cidade, e por isso Márcia continua a ser uma escritora alternativa. “Ser artista alternativa é ser da resistência”. Com obras traduzidas até para outros idiomas em publicações de revistas independentes, a escritora aponta que a literatura amazonense é muito rica e não deve a outros estados, mas que ainda sofre com ostracismo e com a falta de apoio.
“Arrisco até em dizer que a nossa literatura amazonense sofre bairrismo ou preconceito. Nós temos uma literatura que possui uma identidade própria. Uma linguagem própria. Uma força própria e peculiar. As pessoas daqui precisam se aproximar mais da nossa literatura. As escolas e universidades precisam ler mais e estudar os nossos autores. Mas também é preciso sobretudo romper a bolha política e hermética desses escritores de academia que se fecham e compactuam com esta política assassina e burguesa do estado e seus braços”, disse.
Contos seus como A Louca, por exemplo, são baseados em memórias da infância que Márcia viveu no bairro Educandos, incorporadas em sua literatura como personagens que vivem à margem da sociedade, marca de sua escrita. Sua obras já foram adaptadas para cinema e teatro. O Desentupidor de Fossas, que fala sobre um alcoólatra que sobrevive na Manaus dos anos 1980, foi transformado em curta-metragem pelo diretor amazonense Jimmy Christian e indicado no Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte de 2023. Este ano, ela publicará pela Editora Transe seu livro de contos O Desentupidor de Fossas e Outras Histórias.
No Acre, a jornalista, ativista e escritora Hellen Lirtêz escreve uma literatura também influenciada pelo local onde vive e pelas relações com as pessoas. Sua escrita é inspirada por contextos amazônicos. “Pelas coisas que faltam nesse local, pelas coisas que têm excesso, pelas coisas que tornam o local onde eu vivo um local totalmente identitário. Tenho uma introspecção muito grande sobre isso”, diz.
Desde os 8 anos de idade, a autora produz poesias e hoje se debruça a pensar sobre as injustiças sociais e ambientais que “tocam fundo a sua alma”, ressalta. Em 2018, conheceu uma maneira mais política de expor seus ideais, por meio do Movimento SLAM (campeonato de poesia falada). No mesmo ano, ficou em 3° lugar no SLAM Estadual e 3° lugar no SLAM Nacional, em dupla, representando a etapa Norte da competição. Em 2020, participou da antologia Porque Somos Mulheres e no ano seguinte publicou poesia na antologia Reminiscências, que reúne 100 escritores acreanos. Em 2022, lançou seu livro solo, Poesia Oceana.
“O que me leva a escrever é o incômodo, sabe? Quase nunca escrevo coisas sentimentais, é um incômodo muitas vezes com alguma questão política, então isso me leva a escrever e eu escrevo para os outros nesse processo. Eu tento fazer uma ponte com as coisas que eu escrevo, para que outras pessoas possam caminhar por ela e ver o que eu consigo ver também”, afirma Hellen.
No que diz respeito à visibilidade da literatura do Norte no resto dos país, a escritora analisa que o Brasil não aprendeu a consumir a região de forma intelectual, sem exotificação ou folclorização das obras, como são consumidos os trabalhos do eixo-Sul-Sudeste. “Muitas vezes por curiosidade, os autores nortistas são lidos, mas é sempre com essa ideia folclórica do que seria o Norte e do que está sendo produzido aqui”, expressa.
Além disso, a poeta questiona a quantidade de escritoras mulheres do Norte que são lidas e consumidas intelectualmente pelo restante do Brasil. Ela considera que a baixa adesão ao trabalho de nortistas é fruto de xenofobia. “Elas não são lidas porque esse pensamento nortista não é validado no restante do país, como uma coisa a ser aprendida e dialogada. A gente vê a xenofobia voltada para cá, para nossas questões culturais, pelo jeito como a gente fala e pelo jeito como a gente se posiciona, vinda de regiões como sudeste e o sul”, diz ela.
Mesmo quando há a presença de autores do Norte nas publicações e círculos literários, Hellen diz que não é comum a presença de mulheres escritoras. “Essas mulheres ainda não são lidas, então, a gente precisa ler mulheres, admirar essas mulheres e consumir esse conhecimento que essas mulheres proporcionam para poder impulsionar de verdade a literatura nortista feminina”.
Barbara Primavera, jovem poeta nascida no município de Afuá, no Pará, observa que seus escritos estão cercados pela Amazônia. Transitando entre rios e asfalto, do Pará à cidade de Macapá, no Amapá, ela fala da Amazônia sob a perspectiva de uma pessoa que viveu cercada pela vida cotidiana ribeirinha. Desde 2016, participa de rodas de poesia e exposições em eventos literários nas cidades de Macapá e Santana, onde desenvolveu seu trabalho de escrita que começou aos 13 anos de idade.
“Falar através desse olhar me trouxe uma sensibilidade muito grande”, explica sobre a sua obra, que abarca também as histórias de mulheres silenciadas da Amazônia, que “apesar das belezas naturais e coisas muito lindas que nós temos dentro da Amazônia, nós temos mulheres à margem dos rios sendo abusadas, e eu queria falar sobre isso”, diz, citando como exemplo o poema “Certas Marias”, um relato de violência sexual em uma família ribeirinha.
Outros temas que rodeiam o seu processo são a misticidade e os encantamentos dos povos de terreiro e de religiões de matriz africana. “Falar sobre Amazônia e falar sobre a mulher da Amazônia, falar sobre as mulheres de terreiro, isso é muito interessante, é um prato cheio para mim. A gente vê essa misticidade nos nossos costumes amazônicos, com os banhos de ervas. Acho que os meus poemas têm gosto e cheiro de folhas”, relata.
Para Barbara, os desafios de escrever na região Norte emergem principalmente na falta de políticas públicas que viabilizem a publicação de livros físicos e impressos. Outra barreira é a apatia do público diante das obras nortistas. Ela acredita que os autores da região são ignorados pelo cenário da literatura nacional. “Há uma falta de circulação, uma falta de valorização. Apesar de estarmos em um mundo muito virtual, a publicação de livros é muito importante. Outro desafio é que as pessoas não leem autores do Norte, mesmo com a vasta produção literária produzida aqui”, declara.
Furar a bolha literária
De Roraima, Sony Ferseck, escritora indígena da etnia Macuxi, foi semifinalista na categoria poesia do 65º Prêmio Jabuti, em 2023, com seu livro Weiyamî: mulheres que fazem sol. Diante das condições de produção e difusão das obras de autoras e autores do Norte, que acaba afetando a sua visibilidade, Sony diz não acreditar que conseguiu chegar tão longe. “Se me perguntassem lá no início da minha andança editorial e de escrita que eu ficaria entre as semifinalistas da categoria poesia no Prêmio Jabuti, não iria acreditar porque são muitos nãos que temos de receber ainda hoje”.
A escritora percebe, no entanto, que as tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais, ajudaram a fazer com que os escritores do Norte pudessem se encontrar e estabelecer conexões, trocas de experiências e circular seus livros para além de seus locais de origem. “A visibilidade tem aumentado pouco a pouco, mas para a maior parte da população do Brasil, escritoras do Norte não fazem parte de seu horizonte de leituras ou mesmo conhecimento. Dei algumas aulas na Universidade Federal de Roraima (UFRR) de literatura e perguntava aos alunos que indicassem nomes de autores e autoras do Norte. Pouquíssimos sabiam nomear”, relatou.
Ferseck tem mais dois livros publicados, Pouco Verbo (2013) e Movejo (2020). Weiyamî: mulheres que fazem sol, publicado em 2022, é uma obra composta por 15 poemas bilíngues, que combinam português com macuxi, escritos em versos livres. O título da obra é na língua macuxi, “Wei” significa “Sol” que, para a cultura deste povo, é uma entidade feminina e, por isso, Sony usa como alegoria para ilustrar a força da mulher indígena. “Escrevo nos dois primeiros livros sobre muitos assuntos, mas as questões femininas e indígenas sempre estão entrelaçadas nesses assuntos. Não tinha como ser diferente visto que cresci em Roraima, um dos estados do Brasil com os piores índices de violência contra as mulheres, de feminicídio e de violência contra os povos indígenas. Então, é bastante influenciado por estas realidades que vivencio”, afirmou.
Cada um dos poemas de Weiyamî: mulheres que fazem sol recebeu uma ilustração de Georgina Sarmento, artista visual indígena de etnia Macuxi e Wapichana, que entre as técnicas utilizadas incorporou o bordado. A poeta entende que a visibilidade das escritas têm aumentado e tem tido recepção até melhor em outras regiões do que na própria região Norte.
“Na verdade, muitas das vezes somos ignorados pelo cenário da literatura local. Isso porque embora escrevamos na região Norte, não escrevemos de maneira alheia aos problemas sociais, às circunstâncias políticas e históricas dela. Cresci em Roraima, tenho família no Pará também. O governador atual do estado de Roraima foi autor de um projeto de lei que buscava legalizar atividades de garimpo em terras indígenas. Isso para se ter uma ideia do estado de coisas da região Norte. Isso faz com que nossas escritas sejam mais bem acolhidas e recepcionadas entre outros públicos, mais sensíveis e politizados com relação às questões que levantamos”, argumenta.
LEIA A MATÉRIA COMPLETA AQUI → https://www.nonada.com.br/2024/02/tecendo-narrativas-do-norte-autores-e-autoras-buscam-mais-espaco-na-cena-literaria/
Em outras notas
- Os carnavais do Rio Janeiro e de São Paulo, os mais midiáticos do Brasil, trouxeram muitas influências da literatura neste ano. A escola Mocidade Alegre, do bairro do Limão, ganhou o carnaval da capital paulista, por exemplo, com o enredo “Brasiléia Desvairada: a busca de Mário de Andrade por um País”, explorando as viagens de “descoberta do Brasil” do escritor paulista. Já Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, foi tema da Portela, no Rio. O livro esgotou em seguida na Amazon. A Revista Quatro Cinco Um fez um apanhado bem legal com os livros de ficção e de não ficção que apareceram/influenciaram os enredos dos carnavalescos. Confere!
- O Brasil é o país homenageado na 32ª Feira Internacional do Livro de Havana. Com o objetivo de difundir a cultura brasileira por meio do incentivo à leitura e formação de novos leitores, o governo brasileirou levou ao evento internacional 15 escritores e escritoras brasileiros de diversos gêneros da literatura. São eles: Ailton Krenak, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Elisa Lucinda, Emicida, Frei Betto, Jarid Arraes, Jeferson Tenório, Marcelo D' Salete, Márcia Kambeba, Cidinha da Silva, Graça Graúna, Otávio Júnior, Socorro Acioli e Patricia Melo. A Feira segue até o dia 25 de fevereiro. Saiba mais aqui.
- Em Porto Alegre, rola a quinta edição do Festival Literário Rastros de Verão, entre 24 de fevereiro e 23 de março em diversas livrarias e também no espaço da Casa de Cultura Mario Quintana. Evento idealizado para homenagear a memória e o legado literário de João Gilberto Noll e difundir a produção literária local mais recente, o festival conta com a presença de cerca de 70 autores e autoras. A abertura será na livraria Baleia, com a participação do escritor Daniel Galera e da professora, ensaísta e pesquisadora Regina Zilberman. Programação completa no site Literatura RS.
Apóstrofos
- Autores de romance policial, suspense ou terror podem inscrever suas obras em sete categorias até o dia 29 deste mês no Prêmio Aberst. Vai lá.
- Para quem é de Porto Alegre tem um curso presencial de escrita que vai rolar a partir de março com as escritoras Julia Dantas e Caroline Joanello. Informações aqui.
- Em entrevista ao podcast Ilustríssima, da Folha, a escritora Noemi Jaffe reflete sobre criação literária. Escute.
Extra
O Nonada Jornalismo publicou um perfil lindo sobre a Dona Nicolina, a baiana mais antiga do carnaval de Porto Alegre. Aos 93 anos, ela relembra momentos de sua vida. Confira um trecho da matéria e leia o perfil completo aqui.
“Dizem os mais antigos que quando a pessoa está sempre pronta para sair, ela tem o pé que é um leque. Para a amiga e baiana da escola, Maria Clara, Nicolina é assim, e está sempre perguntando a ela ‘’não vai sair na escola esse ano?’’. Mesmo não sendo mais diretora das baianas, ela é quem puxa e incentiva as que desfilam no chão. “A gente colocava o pé lá na casa dela, ela já pegava a sacolinha e nos levava para a escola. Ficava o tempo todo com a gente, dançando”, conta.