Redemoinho #24 - Carol Bensimon e a investigação do passado em Diorama
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, tudo bem?
Nesta edição da Redemoinho, vamos abordar a carreira literária da escritora Carol Bensimon e falar sobre o seu mais recente livro, Diorama. A Isabelle Rieger, do Nonada, escreveu uma boa resenha sobre o romance.
Você deve ter visto toda a tentativa de censura ao livro O Avesso da Pele no Rio Grande do Sul que rolou mais no fim da semana passada e que ganhou novos capítulos nesta terça-feira. O livro agora está sendo recolhido das bibliotecas em todas as escolas estaduais do Paraná ligadas ao Núcleo de Curitiba. Segundo informações do site Plural, a Secretaria de Estado da Educação decidiu por uma “reavaliação pedagógica” do livro. O romance foi indicado para alunos do Ensino Médio. Fizemos um resumo desse revoltante acontecimento, pelo menos até o fechamento dessa edição, aqui na news. Nesta terça (5), o Estadão trouxe um furo de reportagem sobre o prêmio Sesc de Literatura, um dos mais tradicionais da área no Brasil. Faço um pequeno resumo nas notas também. Está sendo uma semana agitada.
Ah, uma boa notícia no meio disso: O Nonada foi um dos veículos convidados pelo Ministério da Cultura para cobrir a 4º Conferência Nacional de Cultura. Estamos fazendo cobertura tanto no site, como no Instagram! Acompanhe!
Boa leitura!
Carol tem uma trajetória literária consistente e reconhecida. Em 2017, a escritora venceu o prêmio Jabuti de melhor romance com O Clube dos Jardineiros de Fumaça (Companhia das Letras). Sua primeira narrativa longa, Sinuca embaixo d’água (Companhia das Letras), de 2009, foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura. Também é autora de Uma estranha na cidade (Dublinense), Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras) e Pó de Parede (Não Editora).
Seu livro mais recente, Diorama, é inspirado em um histórico crime político que aconteceu em Porto Alegre no final da década de oitenta. Trata-se do assassinato do deputado estadual José Antônio Daudt. Ele foi morto por dois tiros de espingarda quando chegava em sua casa no bairro Moinhos de Vento. Carol, entretanto, deixa claro que não há nenhuma pretensão investigativa ou jornalística. “ Eu decidi usar como ponto de partida para criar essa narrativa ficcional”, conta.
Carol lembra que durante o processo de escrita do Sinuca ela já se sentia preocupada com a pesquisa para os romances. “Lembro de estar deslumbrada com o realismo literário, por exemplo, falar com advogado, mecânico, etc para saber especificidades que eu queria colocar no livro. Mas era um nível muito básico ainda”, conta. Em Cowboys fez pesquisas em forma das viagens, já que o livro é uma espécie de road trip por várias cidades do interior do Rio Grande do Sul. “Porém, acho que começou a pegar mais com o Clube dos Jardineiros, tomei gosto por isso de descortinar o universo geográfico e histórico”, revela.
Assis Brasil orientou Carol durante o mestrado e lembra de um convívio muito construtivo. O romance Sinuca Embaixo D’Água é o trabalho final da sua pós-graduação, juntamente com um ensaio teórico intitulado A personagem ausente na narrativa literária. "Ela trouxe uma colaboração inestimável ao tema da personagem ausente, e que estou sempre recomendando aos meus alunos atuais”, diz. Em Sinuca, lançado em 2009, pela Companhia das Letras, sete narradores reconstroem suas vidas a partir da morte de uma garota em um acidente automobilístico.
Só depois do mestrado e da publicação, Carol diz que conseguiu se ver como escritora. “Eu sempre fui receosa em me afirmar escritora. Nunca fui do tipo “eu escrevo, portanto sou escritora”. Eu acho que eu precisava ser meio que validada pelos outros. Então, quando eu estava no mestrado, eu publiquei o meu primeiro livro. E, no ano seguinte, o primeiro romance que era produto do mestrado. Acho que nesse momento eu passei a me considerar escritora”, relata. Aliás, ela conta que foi parar na Companhia das Letras depois de uma indicação do escritor Daniel Galera, que gostou do Pó de Parede. "Sobretudo do da primeira história e então ele comentou sobre o livro com a Marta Garcia que era a editora e que na época estava lá”, diz.
Daniel Galera começou a carreira um pouco mais cedo que Carol, e lembra de ficar impressionado com a qualidade do texto de Pó de parede. “Nele, tinha esse conto memorável chamado "A caixa", no qual uma das marcas de estilo dela aparecia já bem formada: um talento notável para elaborar o espaço dentro da narrativa, a influência que os lugares, ambientes, arquiteturas e objetos exercem sobre as pessoas e a sociedade, e vice-versa”, explica.
* Esse texto foi feito usando como base o perfil que escrevi da escritora Carol Bensimon para o Jornal do Comércio em 2022.
Catalogar obsessivamente a memória para que ela fique, mas que seja vista de longe
Texto de Isabelle Rieger
O livro Diorama, da escritora Carol Bensimon junta a taxidermia com um caso de homicídio famoso em Porto Alegre e apresenta os conflitos internos da vida da filha do suposto assassino
Em 1988, o pai de Cecília Matzenbacher foi acusado de assassinar um deputado estadual gaúcho em Porto Alegre, João Carlos Satti, no livro, ou José Antônio Daudt, na vida fora da ficção. O caso sacudiu a cidade, com intensa cobertura de imprensa e até hoje permanece sem resolução. A infância de Ciça, entre viagens para o interior gaúcho e na capital, vira um borrão opaco após o crime.
Em 2018, dez anos após o crime prescrever, encontramos a protagonista nos Estados Unidos atuando como taxidermista. Ela monta animais para a exibições ou estudos científicos e namora um músico que não conhece a história de sua família. Durante o livro, vemos uma personagem que não quer lembrar de sua vida anterior, antes de aterrissar o avião na América do Norte, mas que, ao mesmo tempo, não consegue parar de pensar no Sul do Brasil. A narrativa se alterna entre passado e presente, fazendo com que seja impossível largar o livro até finalizada a leitura.
José Antônio Daudt foi morto com dois tiros de espingarda enquanto estacionava seu carro Monza cinza-escura na garagem do prédio. Ele morava no cruzamento entre as ruas Quintino Bocaiúva e Marquês do Herval, no bairro Moinhos de Vento. A região é considerada nobre na cidade. Em Diorama, somos atravessados pelas imagens de Porto Alegre nos anos 80. “Escaler. Ocidente. Anjo Azul. Wunderbar. Hotel Plaza São Rafael. Alguns faróis rasgam a avenida Oswaldo Aranha e Protásio Alves. (...) Punks e skinheads deixam marcas de coturnos no chão molhado do Bar do João, em cujas famosas prateleiras se enfileiram vidros de cachaça com tijolos, morcegos e centopeias boiando no álcool, como um laboratório de ciências feito por uma criança”.
Bensimon, inclusive, em um bate-papo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em maio de 2023, comentou que, para ser fiel à grafia dos nomes dos bares, entrevistou dezenas de pessoas. É esse trabalho apurado de pesquisa e de refinamento da linguagem que encontramos no livro. As cenas apresentadas parecem fotografias estáticas, compondo com os personagens do romance uma paisagem disfuncional gaúcha.
Após seu assassinato, foi descoberto que Daudt era gay. Ele vivia nos anos 80, no Rio Grande do Sul, sendo um deputado que defendia pautas progressistas na Assembleia. A opinião pública da sociedade conservadora caiu em cima dele - morto -, então, à época. Foi um alvoroço saber que o homem que fazia discursos inflamados nas rádios locais namorava um adulto 25 anos mais jovem, a quem apresentava como primo. O crime pode ter funcionado como uma espécie de redenção divina para quem transgrediu a moral e os bons costumes, como uma das hipóteses do livro.
Ler o Diorama amplia a visão da história da cidade para os habitantes de Porto Alegre. Mesmo que não se tenha vivenciado a época, o imaginário da boemia noturna no Bom Fim na capital gaúcha é notório. O cruzamento das ruas no Moinhos de Vento permanece com o mesmo prédio branco com a grade verde-ploti, onde morou Daudt. Agora, os vizinhos se recusam a comentar sobre o crime. Já os bares ainda apresentam algumas características da época e a Osvaldo Aranha ainda é uma das avenidas principais do bairro.
Durante a narrativa, Cecília empalha animais para colocá-los em cenas do passado. Ela, assim como seus animais prestes a entrar em cena, está desterritorializada. Quando os bichos são representados em um habitat por meio de um diorama, é porque o espaço já foi destruído, aniquilado. Parece que, por meio dessa prática obsessiva de pesquisa, trabalho de campo, colagem, montagem e isolamento, a protagonista encontra paz mental na montagem da paisagem artificial.
Ciça, da mesma forma em que deseja destruir suas lembranças, acaba tendo que preservar memórias de bichos empalhados. “Eu adoro esse trabalho meticuloso, a ideia de que é preciso ser uma mistura de cientista, pintora, escultora e artesã para recriar o que a natureza gerou ao longo de milhões de anos de aleatoriedade e evolução”, nos apresenta a narradora no livro.
O debate interno de Cecília também é a forma que a narrativa se apresenta. Ora vemos uma narradora em primeira pessoa que sofre, no passado e no presente, sobre a segregação familiar que ocorreu após o crime, ora vemos um narrador em terceira pessoa, onisciente e onipotente, que sabe e comenta sobre as intenções dos outros personagens e é preditivo, se intrometendo ligeiramente no andamento da história. Assim, o livro pode ser visto como uma mescla de romance histórico com romance policial, a exemplo das séries true crime. Ao mesmo tempo, se encaixa na categoria de narrativa hiper contemporânea por mesclar diferentes vozes narrativas que se intrometem e colidem entre si.
É só ao final do livro que Ciça cogita voltar para Porto Alegre, porque seu pai tem um AVC. A relação deles é permeada de silêncios e de assuntos não ditos, assim como com a mãe, uma ex-socialite da cidade. Cecília encara seu pai direto nos olhos tal como faz com seus animais quando os ajeita para serem representados nos dioramas. A forma com que consegue visualizar o passado é a mesma aplicada em seu trabalho: impessoal e distante. É a partir da taxidermia que a protagonista consegue dar sentido à situação que rompeu o fluxo normal e esperado de sua vida. Do mesmo modo, a atitude profissional acaba sendo a única que consegue tomar com a pessoa catalisadora do processo de desenraizamento: seu pai.
Diorama fala sobre o passado que interfere o tempo todo no presente e do qual não conseguimos nos livrar tão fácil, mesmo que a uma distância de mais de 10 mil quilômetros. Ciça descobre que as motivações para o assassinato do deputado amigo de seu pai são mais complexas do que imaginava quando criança à medida que se cresce e se percebe cidadã em uma sociedade conversadora, heteronormativa e reacionária. O rompimento com sua família e a recusa em participar deste espaço podem ser vistos como atos de resistência.
Em outras notas
- Mais um caso de tentativa de censura envolvendo um livro aconteceu aqui no Rio Grande do Sul. Agora com o premiado O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, lançado em 2021. Tudo começou quando a diretora de uma escola estadual da cidade de Santa Cruz do Sul publicou um vídeo nas redes sociais pedindo que exemplares da obra fossem retirados da instituição e não fossem usados por professores dentro da sala de aula, alegando que achava “lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível”. O livro entrou para o Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) ainda na época do governo Bolsonaro. A reação foi imediata. A diretora foi amplamente acusada de censura e Tenório se manifestou em nota.
“O Avesso da pele já foi adotado em centenas de escolas pelo Brasil, venceu o prêmio Jabuti, foi finalistas de outros prêmios, teve direitos de publicação vendidos para mais de 10 países, foi adaptado para o teatro. Além disso, o livro foi avaliado pelo PNLD, em 2021, ainda no governo Bolsonaro. A própria diretora assinou a ata de escolha do livro. As distorções e fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras de "baixo calão" e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”, disse o escritor. O escritor teve amplo apoio de outros escritores e de vários instituições e associações. O MEC também se manifestou.
No sábado (2), foi revelado que a 6ª Coordenadoria Estadual de Educação (CRE) pediu para que O Avesso da Pele não fosse distribuído nas bibliotecas e nem aos alunos do ensino médio. No entanto, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) emitiu nota afirmando que a obra será usada nas escolas estaduais na área de abrangência da coordenadoria, sediada em Santa Cruz do Sul. A Secretaria também negou ter autorizado recolhimento de livros e reiterou que a obra será usada nas escolas estaduais na área da coordenadoria que orientou a censura.
Mas não acabou por aí. Nesta terça (4), o livro foi “reavaliado” pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná e está sendo recolhido das bibliotecas em todas as escolas estaduais ligadas ao Núcleo de Curitiba. O jornal Plural traz mais informações, incluindo uma nota da APP - Sindicato, classificando o episódio como censura. A Folha noticiou que as vendas do livro na Amazon aumentaram 400% desde que a perseguição começou.
Alguns dias atrás, o escritor e cineasta Ivanir “Boca” Migotto desistiu de ser patrono da Feira do Livro de Carlos Barbosa, cidade do interior do Rio Grande do Sul, após uma série de ofensas e críticas à escolha de seu nome nas redes sociais. "Ao me deparar com alguns comentários, fiquei pensando que não fazia sentido eu me manter (como figura central do evento); eu não preciso disso", desabafa. Mais informações nessa matéria do Jornal do Comércio.
Reitero o absurdo da tentativa de censura que paira sob a cultura brasileira e como a extrema direita ainda está alinhada o suficiente para ter alguma força e visibilidade. É preciso seguir atento.
- O furo é do jornal o Estado de São Paulo. Mas vamos resumir aqui: O Prêmio Sesc de Literatura, um dos maiores do Brasil já deveria estar até encerrando as suas inscrições da edição de 2024, mas o edital não foi nem lançado. A justificativa oficial é a necessidade de realizar alguns ajustes, ainda em fase de discussão, e também a inclusão de uma categoria voltada para a poesia neste ano. A apuração do jornal aponta, entretanto, que há rumores de tentativa de censura prévia, boicote e demissões, desde que Airton Souza, escritor e professor de história, leu um trecho de seu romance premiado em 2023 pelo Sesc, Outono de Carne Estranha, no Sesc Paraty, em novembro, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). E até o Grupo Editorial Record, parceiro desde o início em 2003, responsável pelo lançamento dos livros vencedores, ameaça se retirar do projeto. Henrique Rodrigues, à frente do Prêmio Sesc desde sua criação e que organizou a programação da entidade na Flip, foi demitido assim que voltou de férias, em janeiro. Ele escreveu uma coluna nesta terça na Publishnews sobre censura na literatura contemporânea.
- Estão abertas as inscrições para o Prêmio Oceanos. Entre 4 e 24 de março, autores e editores podem inscrever gratuitamente livros publicados em primeira edição em 2023. Ao final do ano, serão escolhidos dois vencedores: um de poesia e outro de prosa/dramaturgia. Podem ser inscritos romances, livros de poesia, conto, crônica e dramaturgia, editados em qualquer lugar do mundo, desde que escritos originalmente em língua portuguesa e publicados entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2023. Autores e editores podem inscrever quantas obras desejarem a partir do preenchimento da ficha de inscrição e a inclusão do livro inscrito em formato PDF neste site. A premiação é aberta a livros impressos e digitais, sejam de editoras ou autopublicações. O regulamento completo, com informações detalhadas sobre todo o processo de avaliação desta edição, também está disponível no site de inscrição.
- Na segunda edição de 2024 da série mensal de palestras Vozes Brasilis, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) receberá a escritora Eliana Alves Cruz. A autora será o destaque no evento em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, intitulado "8M: Vozes Resilientes - uma homenagem à escritora Eliana Alves Cruz". Marcado para o dia 8 de março, a partir das 14h, a palestra ocorrerá no Auditório Machado de Assis, localizado na sede da FBN, no Centro do Rio. A mediação ficará a cargo do também escritor Henrique Rodrigues. Durante o evento, Eliana discutirá sua obra, a elaboração de personagens e sua experiência como escritora. A entrada é franca e terá transmissão ao vivo pelo YouTube da Instituição. As inscrições podem ser feitas por meio da plataforma digital Even3, até o dia 7 de março.
Apóstrofos
- Artigo da professora Heloisa Fernandes Câmara sobre o fantasma da ditadura que continua assombrando o presente. Lá na Quatro Cinco Um.
- É um texto do ano passado, mas vale a pena ser recomendado: A Revista O Grito investiga como as HQs também contribuíram para inventar a ideia do território como parte de um imaginário místico e tradicional. Aqui.
- Em entrevista ao jornal Rascunho, a escritora portuguesa Joana Bértholo mostra-se atenta e crítica às contradições do ser humano. Leia.
Extra
O Nonada está cobrindo a 4º conferência nacional de cultura, a convite do Ministério da Cultura! A nossa repórter Anna Ortega estará lá todos os dias do evento, produzindo jornalismo para as nossas redes sociais e para o site. E por que a Conferências é tão importante? O encontro vai reunir 3 mil pessoas que vão debater os rumos das políticas públicas de cultura do país. O objetivo é eleger 30 propostas que serão a base do novo Plano Nacional de Cultura e deverão ser priorizadas pelo MinC nas próximas décadas.
Essas propostas abordam tópicos como acesso à cultura, fomento ao setor cultural, direitos dos trabalhadores da cultura, valorização da cultura popular, acessibilidade cultural, entre outros. Confira no site e no instagram a nossa cobertura!
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