Redemoinho #26 - Uma relação modernista (e complexa): as trocas de cartas entre Mário e Oswald
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Olá, pessoal, tudo bem?
Vocês já devem ter notado que eu gosto de cartas, né? Minha relação com as correspondências aumentou com o podcast Quando Chegou Carta, que mantive na época da pandemia (aliás, descobri recentemente que ainda tem muita gente escutando) e então comecei a fazer algumas pesquisas e matérias com essa temática. E, nessa edição da Redemoinho, vamos ter mais uma delas, porque recebi aqui mais um livro da Edusp, da série de correspondências, dessa vez entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Conversei com a pesquisadora Gênese Andrade que organizou a publicação.
Além disso, nesta edição temos várias notícias: Bienal do Livro da Bahia, indicação de matéria sobre o artista Poty Lazzarotto, mais sobre a nova edição do Prêmio Sesc de Literatura e a criação de bibliotecas nos novos condomínios do programa Minha Casa, Minha Vida. Ah, o Nonada mantém a Rede Veredas e estamos divulgando nosso banco de fontes de artistas e educadores que trabalham com a temática decolonial, falo aqui na Redemoinho, porque talvez possa interessar alguns de vocês.
Boa leitura!
Gostaria que comentasse um pouco sobre o processo de organização das cartas, até também no sentido do livro publicado com as variadas notas de rodapé, as imagens, os paratextos... Quais são os cuidados essenciais quando se trabalha com essas missivas tão importantes?
Gênese Andrade - É apaixonante trabalhar com materiais que são do âmbito privado, como é a correspondência entre escritores. Não podemos nos esquecer de que se trata de documentos que não são concebidos para se tornarem públicos. Porém, eles são fundamentais, em muitos casos, para a compreensão das obras publicadas, pois trazem trechos inéditos e comentários sobre o processo de criação, apreciações sobre a obra do interlocutor e de outros. E também tratam de questões pessoais, incluem desabafos, ironias, intrigas, expressões de afeto. São um importante registro do contexto cultural, da sociabilidade, dos bastidores da criação literária.
Este livro segue o padrão da Coleção Correspondência de Mário de Andrade. Um de seus coordenadores, Marcos Antonio de Moraes, acompanhou todo o trabalho de perto e teve uma atuação fundamental para que o livro se concretizasse como desejávamos. O fato de Oswald ter um estilo sintético e mencionar muita coisa de forma quase cifrada exigiu que fossem feitas muitas notas. Foi preciso pesquisar cada nome próprio ou referência que aparece nas cartas e cruzar informações para entender muita coisa que ele diz, e ao mesmo tempo, era fundamental ter conhecimento do contexto cultural aqui no Brasil, da circulação dos artistas que ele menciona, para compreender o conjunto. E muita coisa se esclarece também em outras cartas, como as de Sérgio Milliet para Mário ou para Yan de Almeida Prado, na correspondência de Tarsila com Mário ou com a família, etc. As notas têm como objetivo contextualizar o que ele menciona, e elas dão conta do que é relevante para entender a correspondência.
As cartas que Oswald envia a Mário são belíssimas, escritas em papéis variados, timbrados, coloridos, com desenhos... Nunca haviam sido reproduzidas, apenas citadas. Só os postais já haviam sido publicados, na edição de Postais a Mário de Andrade, organizada por Marcos Antonio de Moraes, de 1993, que está esgotada. Por isso, decidimos incluir tudo em fac-símile. Infelizmente, as cartas de Mário a Oswald não foram localizadas, então o livro só traz as que Oswald enviou a Mário.
No caderno de imagens, foram reproduzidas fotos, dedicatórias e retratos pintados de Mário e Oswald. As dedicatórias que eles destinaram um ao outro nos respectivos livros são documentos importantes, grande prova de afeto e amizade. As fotos, que flagram a presença de Mário na fazenda Santa Teresa do Alto, juntamente com Oswald, Tarsila, Manuel Bandeira e outros, são preciosas, especialmente aquelas tiradas pelo próprio Mário de Andrade. Vários desses documentos foram raramente reproduzidos.
Em seu artigo publicado no livro, você destrincha muito bem o contexto das cartas. Acho interessante também como alguns acontecimentos acabaram também separando a amizade, interessante como essa admiração continuava (mesmo que escondida por um tempo). Na sua visão, o que mais um admirava um no outro? Como essa conexão mudou e influenciou o tempo literário e cultural da época?
Gênese Andrade - A relação de Mário com vários de seus amigos e interlocutores era pautada pela admiração intelectual. E podemos dizer que o que aproximou Oswald de Mário também foi a admiração intelectual. A amizade entre eles começa quando Oswald, como repórter, ouve um discurso de Mário no Conservatório Dramático e Musical, uma saudação a Elói Chaves, em novembro de 1917 – Mário ainda era aluno da instituição, da qual se tornará professor depois. Oswald disputa o texto com outro jornalista para publicá-lo no jornal; Mário fica lisonjeado com o gesto, e então eles se tornam amigos. Depois Oswald lança Mário como poeta, em maio de 1921, com o artigo “O meu poeta futurista”, sobre os poemas de Pauliceia desvairada, livro que ainda não havia sido publicado. Mário escreve um artigo fundamental sobre Memórias sentimentais de João Miramar, publicado na Revista do Brasil, em 1924. Escreveu também sobre Pau Brasil, texto que seria publicado na revista Estética, mas como ela deixou de circular, ficou inédito, e só foi publicado postumamente.
É muito comovente ver que um acompanhava a obra do outro, mesmo depois que a amizade terminou. E eles avaliavam a obra um do outro com muita seriedade e sinceridade, fazendo críticas entusiasmadas, mas também reprovando aquilo com que não concordavam.
No caso de Mário, isso é muito presente em suas cartas com outros interlocutores também, assim como nos artigos que ele escreveu. Podemos citar essas apreciações no que se refere a Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Lasar Segall... Ou seja, essa interlocução constante foi muito frutífera e importante para todos eles. O Modernismo se estabelece e se desdobra em torno das leituras mútuas, dos diálogos constantes e da atuação do grupo em eventos, como a Semana de Arte Moderna, ou em revistas, como Klaxon e outras.
Com o passar do tempo, há desentendimentos, rompimentos, reconciliações, entre vários deles. Só a amizade entre Mário e Oswald não foi retomada, porque Mário ficou ferido demais com as atitudes de Oswald, sobre as quais não temos muitos dados concretos, só hipóteses.
O trio, Mário de Andrade e o casal Tarsiwald, é fascinante imaginar também como essas relações pessoais também atravessam os fazeres literários e as conexões e criações. Essa também é uma das características únicas dos estudos das cartas ao seu ver? O quanto essas 27 cartas são atravessadas por essas relações extras?
Gênese Andrade - As informações sobre as relações entre Oswald, Mário e Tarsila são marcantes na correspondência que reuni neste livro e também na que integra o volume 2 da Coleção Correspondência de Mário de Andrade: Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral, organizado por Aracy Amaral e publicado em 2001.
A maior parte das cartas trocadas entre Mário e Oswald é de 1923, quando Oswald e Tarsila estavam em Paris, e todas as cartas, exceto uma, são enviadas quando Oswald estava viajando. Nelas, há muitas referências ao que Oswald estava elaborando ou escrevendo; por exemplo, a conferência que ele fez na Sorbonne, em 1923; trechos de Serafim Ponte Grande, em 1926. Oswald também divulgava as obras e revistas do Modernismo na Europa, são frequentes os pedidos de publicações para distribuir e entregar para os artistas com os quais estava convivendo. Ele também menciona as obras de Mário que recebe, como A escrava que não é Isaura, em 1925; comenta o poema que Mário publicou no primeiro número da Revista de Antropofagia, em 1928.
E Oswald comenta as atividades dos amigos modernistas que também estavam na Europa em 1923 (Rego Monteiro, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Sérgio Milliet), faz comentários sobre as polêmicas que estavam ocorrendo no Brasil, sobre as quais recebia notícias. Eles estão o tempo todo em contato, trocando informações e impressões sobre as atividades do grupo; e Oswald tinha muito prazer em contar as novidades artísticas que vivenciava, os livros, revistas, eventos, exposições e espetáculos aos quais tinha acesso.
Sobre o poema que eles criaram em conjunto, teria algum comentário específico?
Gênese Andrade - O poema “Homenagem aos homens que agem” – incluído no dossiê do livro – foi escrito em 1927 e publicado na revista Verde, no mesmo ano. Talvez tenha sido escrito durante algum encontro deles na fazenda Santa Teresa do Alto, onde eles estiveram várias vezes nesse ano.
Esse poema e a proposta do título do livro, “Oswaldário dos Andrades”, são muito curiosos. Mas, infelizmente, não há mais informações sobre isso. É a única produção a quatro mãos dos Andrades que se conhece. Seria incrível se o livro existisse, mas não há pistas se chegaram a escrever mais alguma coisa juntos para esse projeto. Pode ter sido uma brincadeira, um fato isolado, mas todos ficam muito curiosos para saber mais sobre isso.
Em outras notas
- No fim de abril, entre os dias 26 de abril e 1º de maio, rola mais uma edição da Bienal do Livro Bahia, em Salvador. Com o tema As Histórias que a Bahia Conta, a edição 2024 da Bienal do Livro Bahia terá a presença de pelo menos um participante baiano em todos os painéis, mesas de debates e demais atividades, seja um autor, uma personalidade ou um mediador. A programação foi revelada recentemente e traz entre os convidados autores internacionais como Abdi Nazemian e Scholastique Mukasonga, além de alguns dos principais expoentes da literatura brasileira contemporânea, como Itamar Vieira Jr, Jeferson Tenório, Alinei Bei, Socorro Acioli e Thalita Rebouças. Ao todo, serão mais de 170 autores e artistas que vão participar em eventos com o público, em três diferentes espaços da programação cultural oficial: Café Literário, Arena Jovem e Espaço Infantil. Saiba mais sobre no site oficial do evento.
- Você conhece o trabalho de Poty Lazzarotto? O traço do artista ilustrou mais de 170 livros, entre capas e contracapas, frontispícios e imagens internas. Machado de Assis, José de Alencar, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Antônio de Alcântara Machado, Jorge Amado e Dalton Trevisan foram alguns dos autores cujas obras passaram por suas tintas. No Jornal da USP, tem uma matéria bem bacana sobre o livro Texto e Imagem: a Ilustração Literária de Poty Lazzarotto, que é resultado da tese de doutorado de Fabrício Vaz Nunes, defendida em 2015 na Universidade Federal do Paraná (UFPR). O autor investiga a contribuição de Poty no campo da ilustração literária, analisando as relações entre texto e imagem, como o título da obra anuncia. Trata-se também da maior coleção de ilustrações já reunidas do artista, com cerca de 400 reproduções de seus trabalhos.
- E o prêmio Sesc de Literatura lançou seu novo edital no dia 25 de março. Há várias novidades, entre elas, a introdução da categoria Poesia. Além disso, os vencedores de cada categoria também receberão uma premiação em dinheiro no valor de R$30 mil. O Grupo Record interrompeu a parceria de 20 anos e agora os livros serão publicados pela Editora Senac Rio. Em nota, a Record disse lamentar o fim da parceria e desejou sucesso à nova fase do projeto.
O portal PublishNews fez uma matéria bem completa sobre esse novo edital. Em diversos setores, há uma preocupação sobre possíveis mudanças nos critérios de avaliação após alegações de tentativa de censura a uma das obras premiadas no ano passado, o romance Outono de Carne Estranha, de Airton Souza. Uma alteração, em particular, chamou a atenção no novo edital: a menção a obras “destinadas a todos os públicos”. O PublishNews entrou em contato com o Sesc e a resposta foi a seguinte: "Quando mencionamos 'todos os públicos', estamos incluindo obras direcionadas ao público adulto. Isso não prejudica os participantes; ao contrário, buscamos englobar um espectro maior de escritores na premiação. A alteração visa expandir o alcance das obras do Prêmio Sesc de Literatura"...
- Na semana passada, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul atualizou a lista de leituras obrigatórias para o vestibular de 2025 e o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, é um dos que entraram na relação. Depois de todos os casos de censura envolvendo a obra, essa notícia traz um pouco de conforto. Nas redes sociais, o autor comemorou: “Estou comovido com a entrada do "O avesso da pele" para lista de leituras obrigatórias da UFRGS. E ainda junto com meu irmão/amigo José Falero, com o livro Mas que mundo tu vive. Muita Alegria, gente! O livro chegando onde ele tem que chegar: nas mãos dos estudantes!”, escreveu.
- O Instituto Moreira Salles (IMS) celebra o aniversário de quinze anos da Revista Serrote com o lançamento de nova edição, já disponível nas livrarias, e apresenta a 7ª edição do Festival Serrote, que acontecerá nos dias 3 e 4 de maio, no IMS Paulista. A programação abrange mesas de debates e a já tradicional "serrote ao vivo", uma apresentação que combina performances, leituras e música. Entre os participantes confirmados, destacam-se o escritor chileno Alejandro Zambra, que contribui com um ensaio na serrote #46 e lança seu novo livro, Literatura infantil, pela Companhia das Letras. Também marcam presença o pesquisador Mário Augusto Medeiros da Silva, autor de A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil; a escritora, roteirista e ativista Triscila Oliveira; o artista Thiago Rocha Pitta; e a escritora Bianca Santana. Mais informações sobre os demais participantes e detalhes do evento serão divulgados em breve. Já à serrote #46, disponível nas livrarias, apresenta textos de autores como Hilton Als, Djaimilia Pereira de Almeida e Roland Barthes. Destaque desta edição, o Conto de Natal é um relato que transita entre a ficção, a memória e o ensaio, no qual Alejandro Zambra narra, de maneira bem-humorada, sua relação de amizade com seu editor.
Apóstrofos
- O programa Minha Casa, Minha Vida vai se aproximar ainda mais da cultura, com a criação de bibliotecas que farão parte dos condomínios e serão abastecidas com livros doados pela Academia Brasileira de Letras. Saiba mais.
- No Jornal Rascunho, uma entrevista com a escritora Mariana Salomão Carrara. “Creio que minhas obsessões, até agora, são meus temas: maternidade, luto, solidão, amizade entre mulheres". Aqui.
- Trabalhos inéditos baseados na obra de Gilberto Freyre concorrem a R$20 mil e publicação na Global Editora. As inscrições podem ser feitas até 30 de novembro. Vai lá.
- A Feira do Livro anunciou a primeira leva de autores confirmados. Eles também estão atualizando as novidades no instagram oficial. O evento acontece entre 29 de junho e 7 de julho na praça Charles Miller, em frente à Mercado Livre Arena — Pacaembu.
Extra
Publicamos lá no Nonada Jornalismo uma entrevista com o Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural, Henilton Menezes, sobre projetos de fomento da cultura brasileira, mais especificamente também sobre a Lei Rouanet. A entrevista foi feita durante a cobertura que fizemos da 4ª Conferência Nacional de Cultura. Confira uma pergunta da entrevista a seguir e leia ela completa clicando aqui.
Nonada - O MinC pretende incentivar que as empresas tenham uma lógica diferente acerca dos projetos que ela se interessarão na Lei Rouanet?
Henilton – Provavelmente. Imagine o seguinte: se fizermos a Lei Rouanet enxergar os territórios como foco do financiamento, você pode trazer empresas que atuam naquele território onde está instalada. Se ela puder pegar o Imposto de Renda dela e investir, via Lei Rouanet, no desenvolvimento local, é provável que ela olhe esse mecanismo como estratégico, e não simplesmente como Marketing, ou Marca.
Há sempre essa crítica sobre a Lei Rouanet, que as empresas sempre olham para a visibilidade de marca, e é fato. Óbvio que quando você tem várias opções de investimento, o empresário vai escolher o que tem maior visibilidade. Mas, na hora que a gente conseguir que esses empresários enxerguem uma outra lógica, de que ele pode melhorar a qualidade de vida no território onde ele está situado, é provável que ele abdique um pouco da lógica de Marketing puro. Até mesmo pela exigência que a sociedade está fazendo para essas empresas, como os ODSs. É possível que essas empresas enxerguem o incentivo fiscal da cultura para desenvolver territórios criativos no seu entorno. É um processo longo, pois estamos buscando parcerias dessas empresas.
O primeiro projeto que vamos desenvolver é o Cariri Criativo, porque estamos fazendo uma parceria com a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Estamos desenhando essa parceria, porque foi o primeiro estado que nos convidou. A região do Cariri contempla três estados nordestinos: Paraíba, Pernambuco e Ceará. É um grande celeiro artístico, cultural, conhecido no país. Vamos usar esse como um projeto piloto para o desenvolvimento territorial desses lugares que estão no Brasil com vocações culturais.
Ah, um outro Extra: ficaria muito contente se lessem a minha newsletter de escrita, é a Contagens! Lancei um texto novo há pouco tempo, se chama Como Cultivar Pedras.
Se você veio até aqui, meu muito obrigado por ler a Redemoinho! O que você achou? O que gostaria de ver por aqui? Se gostou, compartilhe com amigos!