Redemoinho #27 - Mario Quintana fez poesia assombrada pelo cotidiano
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, tudo bem?
De onde escrevo há uma janela em que posso olhar o céu. Está nublado no momento, choveu e vai chover mais. Já faz alguns dias que é outono, uma estação que gosto. Agora o calor vai diminuir e o frio vem. Mas qual será a intensidade dele? Antigamente as transições entre verão e inverno eram mais definitivas. Costumava apreciar abril, maio e junho - quando o sol parecia um leve cobertor nos dias mais gelados. Pelo menos aqui em Porto Alegre, meu ponto de partida. Mas vivemos cada vez mais em um mundo sem nuances? Não sei. Talvez seja só a boa melancolia me pegando de novo.
Ou talvez seja só a influência do tema desta edição da newsletter, o poeta Mario Quintana. Seus textos podem parecer tão simples - ou banais, como já ouvi por aí…. -, mas há nessa aparente simplicidade todo um complexo modo de ver o mundo também, não? Resolvi me adiantar na efeméride, afinal, é só no dia 5 de maio que vai se completar 30 anos de sua morte.
Boa leitura!
É notório que não exista um livro biográfico definitivo e profundo de Mario Quintana. Talvez isso ocorra porque toda a sua obra é uma espécie de autobiografia, como ele mesmo definiu em texto intitulado Apresentação, que pode ser conferido no livro Da preguiça como método de trabalho: “Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”. Outro motivo deve ser porque o poeta e suas palavras acabaram se confundindo com Porto Alegre: um dos maiores pontos culturais da cidade leva o seu nome, além de um bairro, assim como ruas e vários eventos artísticos que de alguma forma divulgam sua obra frequentemente.
Mesmo depois de trinta anos da sua morte, a poesia de Quintana mantém sua popularidade com o público. Segundo a professora aposentada do curso de Letras da Ufrgs e que pesquisou a obra do poeta, Maria da Glória Bordini, isso acontece porque o seu lirismo é descomplicado, sem deixar de ser complexo. Para ela, Mario manejava tanto o verso medido quanto o verso livre com igual desenvoltura, como se fosse fácil poetar. “Ele possuía um poder de imaginação carregado de um encantamento só seu, tanto que sua poesia se fixava na mente de todos pela engenhosidade das imagens, tocando nas coisas com um olhar leve, que fazia o leitor pensar: como eu nunca vi isso assim?”, afirma. Outro motivo por tanta popularidade seria que Mario amava Porto Alegre, e nela encontrava recantos e situações com as quais o cidadão podia se identificar e ao mesmo tempo emocionar-se. “Tudo isso o conserva vivo na memória cultural brasileira”, diz.
Emergência
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo —
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
Uma história contada por José Otávio Bertaso, ex-diretor da Editora Globo no qual Mario trabalhou como tradutor, ilustra bem essa ideia da paixão pela capital do Rio Grande do Sul. Está no livro Mario Quintana - O Anjo da Escada, de 2006. No relato, ele lembra de uma das cenas mais extraordinárias que presenciou: a confecção do famoso poema O Mapa. Mario foi levar os originais de seu livro Apontamentos de História Sobrenatural no gabinete de Bertaso, que ficava no sexto andar de um prédio no bairro Menino Deus. Chegou lá em um fim de tarde de outono e quando adentrou a sala, descortinou a Avenida Getúlio Vargas, à esquerda, e a Avenida Beira-Rio à frente. Depois de permanecer durante algum tempo diante da janela, sentou-se junto à mesa de reuniões e rabiscou em um papel qualquer o famoso poema que começa com os versos “Olho o mapa da cidade/ Como quem examinasse/ A anatomia de um corpo”. Simples assim.
Aliás, Mario Quintana ficou nacionalmente conhecido como o “poeta das coisas simples”. A singeleza era uma das principais características do escritor, que distribuía lirismo nos diferentes gêneros pelos quais transitou. “Como se fosse um outsider, deslocado do cotidiano das gentes e examinando-o por lentes extraterritoriais. Apesar disso, seus poemas soam com a naturalidade de alguém imerso no seu lugar e seu tempo, interessado e - no mais das vezes - desconsolado com a cegueira com que nos aproximamos deles”, explica Maria.
Não é possível enquadrá-lo em alguma “escola literária”, sendo tratado como uma espécie de caso singular dentro da literatura, segundo o artigo O Caso Quintana de Affonso Romano de Sant’anna. Para ele, essa singularidade se expressava de duas maneiras: por não pertencer a nenhuma geração ou grupo dentre tantos que surgiram na poesia do século XX, como o modernismo de 1922, a geração de 45 e as vanguardas de 56. O outro motivo seria porque alcançou algo bastante raro no mundo literário, transformou-se em uma personalidade mítica, meiga e cativante - e que todos queriam proteger. Para Maria, todo artista tem uma reserva de significação que não se esgota. “Há muitos trabalhos sobre Quintana, teses, dissertações, e não só no Sul. O poeta é conhecido nas escolas brasileiras, nas universidades, embora nos jornais não apareça tanto, após seu falecimento. Afinal, os cadernos literários, que faziam o elo com o grande público, foram morrendo sucessivamente”, acredita. Uma vertente que poderia ser melhor explorada, segundo a pesquisadora, são seus intertextos literários, dando como exemplo seus anjos e os de William Blake, ou a sua proximidade com os contos de horror e fantasia, ou com o cinema.
Envelhecer
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Em 2018, a Alfaguara lançou a antologia de poemas Segundo Olhar, uma referência ao poema homônimo no qual é ressaltada a beleza das coisas que não chegaram a receber atenção mais de uma vez. Foi organizada pelo escritor e professor universitário João Carrascoza, que aplicou esse “segundo olhar” a mais de 50 anos de obra de Quintana, construindo uma narrativa diferente. O convite partiu da editoria, que havia lançado todos os livros de poesia do Mario, mas tinha o projeto de publicar uma antologia que o apresentasse às novas gerações. “Segui dois vetores: a própria obra do poeta, que reunia seus poemas valendo-se da lógica da dispersão ou da combinação inesperada; e a conexão existente entre os poemas na vasta produção de Quintana, que me permitiu montar um ‘livro novo’ de sua autoria, diferente das antologias anteriores, que seguiam o critério cronológico ou temático”, explica. Carrascoza conta que lê o autor desde criança, quando cursava o ensino fundamental, graças a um soneto de A rua dos cataventos, que estava inserido no livro de língua portuguesa no colégio em que estudava. “O que me encantou foi a sua singularidade lírica, eivada de melancolia, mas também de humor”, explica. Essa proposta diferenciada evoca também que é possível trazer outras abordagens para uma obra que já foi amplamente visitada. “Acredito que é preciso investigar a obra dele lançando a ela um “segundo olhar”, mais profundo, por meio do qual possamos apreender a densidade de sua proposta poética e desfrutar de seu sofisticado lirismo”, completa.
Encontros de poetas
Quando o poeta e crítico de arte Armindo Trevisan viajou do interior de Santa Maria para Porto Alegre no final da década de 1950 para encontrar um dos poetas que mais admirava, certamente não esperava manter uma amizade para a vida. Depois de menção honrosa em um concurso literário, resolveu vir para a cidade para conhecer Erico Verissimo e Mario Quintana - cujas obras já admirava desde criança, especialmente do poeta. Foi atendido pelo escritor da trilogia O Tempo e o Vento e resolveu ir atrás do autor de Rua dos Cataventos. Depois de pedir indicações, conseguiu descobrir o endereço da pensão em que ele morava, e meteu-se para lá. “A senhora foi com a minha cara e disse que ele não estava no momento. Pedi para ver o quarto e ela mesmo meio desconfiada, deixou. Era de uma simplicidade. Perguntei onde poderia encontrá-lo e ela me falou de um café em que ele costumava ir toda manhã”, diz Trevisan.
Na segunda-feira próxima, o encontro aconteceu. “O lugar estava vazio e só ele tomando café quieto, cheguei e ele com aquela carinha meio tímida. Chamei-o de grande poeta e ele respondeu algo como ‘grande não sei, mas sou poeta sim’”. O jovem Trevisan mostrou alguns poemas e Mario os leu ali mesmo. “Eram datilografados os versos. E aí eu sentei e ele pegou e começou a ler. E falava ‘esse tá bom’, de vez em quando. No fim, ele me disse que achava que eu devia continuar. Nasceu daí uma amizade de mais de 35 anos”, diz. Para ele, Mario Quintana demorou até ser reconhecido. “Ele foi legitimado imediatamente por uma série de intelectuais da época que se deram conta logo que os sonetos dele não tinham nada de parnsianos, eram uma coisa nova, revigorante, mas ele ficou muito reduzido ao Rio Grande do Sul”, afirma.
Foi com as traduções, outro grande campo em que Mario atuou, que ganhou fama primeiramente, principalmente de obras como a do francês Proust. “Mas, na realidade, foram as novas gerações que começaram a valorizar ele como poeta, o Caio Fernando Abreu, por exemplo”, acredita. Uma tradução publicada recentemente foi a do Pequeno Príncipe, encontrada pela editora Melhoramentos. A obra de Antoine de Saint-Exupéry só virou domínio público em 2015. Elena Quintana e o próprio Armindo confirmaram a autenticidade da tradução. “E aí então começamos a trabalhar nisso e em 2017 saiu a edição. E essa edição do Mario foi de dez mil exemplares e está praticamente esgotada no País”, conta. Sabe-se que ele era muito fluente em português, apesar de traduzir do inglês pelo dicionário. Do francês tinha pleno domínio, pois o aprendera em criança, em casa.
A verdadeira arte de viajar
A gente sempre deve sair à rua
como quem foge de casa
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos,
as obrigações, estejam ali…Chegamos de muito longe,
de alma aberta e o coração cantando!
A obra de Mario sempre foi uma grande influência para Trevisan, e ele valoriza muito os dois poemas que ele lhe dedicou. “Acontece que eu achei que o Mario nunca ia me dedicar dois poemas, nunca tinha dedicado dois a ninguém”, diz. Até hoje a atitude dele com Mario é de veneração. “Nossa amizade nasceu disso, então, de um menino que estava encantado com o ícone. Até o fim da vida eu tive. Mesmo depois que eu me tornei poeta relativamente conhecido nunca deixei de admirá-lo”, completa.
Em outras notas
- Você ficou sabendo? O Governo Federal sancionou a Lei que cria o Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (SNBE). A nova Lei modifica a definição de biblioteca escolar, que agora passa a ser “equipamento cultural obrigatório e necessário ao desenvolvimento do processo educativo”, com o propósito de democratizar o conhecimento, promover a leitura e a escrita, e proporcionar lazer à comunidade. Agora há uma lista com onze funções básicas, entre elas a obrigatoriedade de um acervo mínimo de livros (e de materiais de ensino) nas bibliotecas escolares — com base no número de alunos e alunas efetivamente matriculadas em cada unidade escolar e nas especificidades da realidade local. Também é meta do Sistema implementar uma política de acervo para as bibliotecas escolares que contemple ações de ampliação, de guarda, de preservação, de organização e de funcionamento.
- Já está em cartaz a adaptação de A Paixão Segundo G.H, de Clarice Lispector. Tem uma matéria bem completa no PublishNews sobre a produção da obra. “O longa teve uma produção extensa, sem pressa, num processo que começou efetivamente em 2017 com ensaios e pesquisas das Oficinas Teóricas, feitos no galpão da equipe do diretor Luiz Fernando Carvalho, e que terminou somente após a pandemia, em 2023, poucos meses antes do lançamento. Maria Fernanda Candido conta que, ainda que a pesquisa e os ensaios de Paixão segundo G.H. tenham começado em 2017, o projeto já tinha uma semente de ideia em 2008. Em entrevista ao PublishNews, ela relata que o diretor Luiz Fernando Carvalho a chamou para interpretar a personagem ainda em 2008, após trabalharem juntos na minissérie Capitu, da Globo. A produção adaptou o texto do romance Dom Casmurro. Após o convite, a atriz ficou quase 10 anos sem tratar do assunto com o diretor, quando ele a chamou em 2017 para que começassem a trabalhar no longa.”. Leia aqui.
- Nos dias 20 e 21 de abril, o Itaú Cultural vai receber o lançamento da edição 45 da série literária Cadernos Negros, criada por Cuti e Hugo Ferreira. Com foco na divulgação de poesia e prosa de artistas afro-brasileiros, a série é fundamental na descoberta e promoção de talentos literários, tendo revelado diversos artistas, como a escritora Conceição Evaristo. “Cadernos Negros é a viva imagem da África em nosso continente. É a Diáspora Negra dizendo que sobreviveu e sobreviverá, superando as cicatrizes que assinalaram sua dramática trajetória, trazendo em suas mãos o livro”, antecipa a apresentação da primeira edição dos Cadernos. A nova edição tem como foco exclusivo a poesia, e o evento de lançamento traz uma vasta programação, reunindo diversas linguagens artísticas para celebrar coletivamente mais um ano de trabalho e sucesso. Saiba mais.
Apóstrofos
- Uma longa e interessante entrevista com o escritor argentino César Aira lá na Quatro Cinco Um. Aqui.
- Torto Arado agora é finalista do International Booker Prize. Mais um reconhecimento para a literatura brasileira. Lá.
- Divulgada a programação da Feira Internacional do Livro de Bogotá, em que o Brasil é o país convidado de honra. Acolá.
Extra
Recebemos aqui no Nonada a Paquetá - revista das artes, do SESC-RJ! Trata-se da edição zero da publicação e que traz um conteúdo muito bacana unido pela temática do atravessar. O material é composto por entrevistas, artigos, ensaios, poemas e contos. Entre os destaques estão, uma conversa com a escritora Ana Maria Gonçalves, e ensaios de Pâmela Carvalho e Ricardo Aleixo.
“Sonho antigo do programa Cultura do SESC-RJ, a revista nasce do desejo de dar vazão ao muito que realizamos nos últimos anos. Todas as colaborações apresentadas são resultados diretos dos nossos projetos. O tecido textual que se costura aqui é parte importante da memória e longevidade que buscamos para acontecimentos tão urgentes”, diz o editorial. Dá para ler no site do Sesc.
Ah, um outro Extra: ficaria muito contente se lessem a minha newsletter de escrita, é a Contagens!
Se você veio até aqui, meu muito obrigado por ler a Redemoinho! O que você achou? O que gostaria de ver por aqui? Se gostou, compartilhe com amigos!