Redemoinho #3 - Como são retratadas as mães na literatura brasileira contemporânea escrita por mulheres?
A newsletter de literatura do Nonada Jornalismo
Olá, pessoal, tudo bem?
Já estamos na terceira edição da Redemoinho, como o tempo passa rápido quando estamos nos divertindo, não é mesmo? Peço desculpas por atrasar um pouco a entrega nesta semana, é que algumas coisas se acumularam. Mas nosso conteúdo está recheado: temos, por exemplo, a leitura de uma dolorosa e bonita carta de Augusto Boel que estava exilado durante a ditadura militar lá na nossa seção “Da Memória”em decorrência do golpe militar que completa 59 anos nesse primeiro de abril. Começamos uma seção mais interativa também, a ideia é que em toda edição eu faça uma pergunta para vocês me responderem. Topam?
“Uma Duas”, de Eliane Brum, “A morte de Paula D.”, de Brisa Paim, “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei, “Quarenta dias”, de Maria Valéria Rezende, “A vida invisível”, de Eurídice Gusmão e “A Chave de Casa”, de Tatiana Salem Levy. Esses livros compõem o quadro de análise da tese de doutorado intitulada “A Putrefação das flores : a maternidade na literatura brasileira contemporânea", da pesquisadora Ana Carolina Schmidt Ferrão, que investigou como a mãe é representada na literatura brasileira contemporânea. Ela conta que no primeiro semestre do doutorado descobriu que estava grávida, e a sua trajetória como pesquisadora foi inevitavelmente atravessada pela maternidade:
As vivências de uma mãe, e especificamente uma mãe na Academia, me envolveram de uma forma potente. Ao mesmo tempo, no grupo de estudos “Limiares Comparatistas e Diásporas Disciplinares: Estudo de Paisagens Identitárias na Contemporaneidade”, coordenado pelo meu orientador, Ricardo Barberena, tivemos contato com obras que traziam a maternidade sob um viés menos romantizado, que se alinhava mais com as reflexões e apreensões que vinham me atingindo. Nesse sentido, a minha trajetória como pesquisadora foi inevitavelmente atravessada pela maternidade, pois o assunto me atraía e compelia. Sem escapatória, alterei todo o projeto da tese. O corpus, por sua vez, já se consolidava naturalmente, como se depois de parir um filho o “ser mãe” me encontrasse por todos os caminhos. Através da leitura das obras que eram debatidas em nossas reuniões do grupo eu vislumbrava a ligação com outras narrativas, relembrava outras mães já lidas por mim. Então as pesquisas motivadas pelo interesse e necessidade em conectar as histórias das mães, de observar como a sociedade e a Literatura nos percebiam e retratavam, levaram-me ao corpus final.
Como questiona em sua tese, Ana procura também entender toda a complexidade da mãe. Segundo ela, há uma ruptura na representação romantizada da maternidade. As obras foram lidas a partir de uma perspectiva feminista em diálogo com autores que abordam temas como subjetividade, estereótipo, identidade, performances de gênero.
As personagens mães são escritas em sua subjetividade, compostas por toda imperfeição, dor, amor, falha e medo que as habitam, ou seja, são, de fato, humanizadas. As relações entre mães, filhas e filhos não são estáticas nem perfeitas, os laços estão vivos e sujeitos às vivências das personagens. As mães não são vilãs ou santas imaculadas, são mulheres. As narrativas também questionam os moldes, as exigências e os mitos que envolvem a maternidade. Eu diria que a Literatura Brasileira Contemporânea escrita por mulheres pensa e contesta as amarras e as máscaras imputadas às mães.
A tese de Ana também é completada com a parte ficcional, em que ela compôs, em consonância com as discussões da tese, uma coletânea de narrativas curtas e cartas endereçadas a seu filho. Ela conta que sempre acreditou ser uma espécie de hipocrisia afastar a subjetividade do pesquisador.
Por mais formal que uma tese possa ser, atrás dela existe um desejo e esse desejo é de um indivíduo, de um afeto ou de um sofrimento, somos movidos por nossos interesses e negar isso é a maior das brutalidades. O processo criativo foi muito ambíguo. Por vezes doloroso, já que ele refletia vários dos meus monstros em relação à maternidade, aqueles sentimentos que as mães querem negar ou esconder. Como escrever que o amor do meu filho, certos dias, sufocava? Eu também tinha vergonha de não ser uma mãe perfeita. No entanto, mesmo doloroso, era também um alívio e uma pulsão colocar tudo isso nas palavras, fosse através das cartas para o Arthur, fosse através dos textos em que eu me distanciava mais. Estes eram também um exercício de mostrar outras histórias e outras mães, empregar uma alteridade e desvendar essa putrefação das flores que tanto me instigou. A maternidade é plural, as mães não são uma entidade unificada, embora o senso comum perpetue essa ideia de que mãe é tudo igual, para isso os textos ficcionais diversificaram as vozes, as perspectivas. A escrita ficcional também cumpre na Tese o papel de corporificar a angústia e o prazer que me corroíam. Eu queria fazer parte dessa corrente de mulheres escrevendo a maternidade, porque isso me ajudava a elaborar a mim mesma como mãe, talvez perdoar e compreender.
Ana defendeu a tese em 2022 e atualmente está trabalhando no projeto de pós-doutorado que segue na mesma temática de maternidade e literatura. A vida pessoal segue ligada à vida acadêmica, já que também está gerando o segundo filho, no oitavo mês de gestação.
Em outras notas
- No dia 1 de abril, completam-se 59 anos do golpe que originou uma ditadura militar de vinte anos no Brasil. É importante sempre lembrar, porque a memória é um campo de disputa. E a impunidade com os nossos ditadores gerou revanchismos, desinformação e distorção da realidade. A ficção também pode ser uma resposta para isso. Há vários livros que trazem a ditadura militar em seu texto, mas vou destacar aqui a obra de Bernardo Kucinski, principalmente o romance K - Relato de uma busca, de 2011, em que ele narra a procura desesperada de um pai por sua filha desaparecida na ditadura. O livro é baseado em fatos reais, em 1974 a sua irmã, Ana Rosa Kucinski, professora do departamento de Química da USP, integrante da ALN (Aliança Libertadora Nacional), foi presa pela ditadura e morta. O Instituto Vladimir Herzog é uma instituição que não deixa a memória desse período sombrio brasileira ser esquecida, e uma fonte que pode também sempre ser levada a sério.
- Não é nenhum segredo que nos últimos anos há uma crescente perseguição a artistas e, consequentemente, a livros. Principalmente, nos Estados Unidos, a tal terra da *liberdade*. Segundo a American Library Association divulgou recentemente, o país recebeu 1269 solicitações de censura a livros no último ano, muitos deles obras escritas ou sobre a comunidade LGBTQIA+. Outros títulos também afetados são alguns clássicos como "O Sol é Para Todos", de Harper Lee, "Ratos e Homens", de John Steinbeck, ou "O Olho Mais Azul", da ganhadora do Nobel de Literatura Toni Morrison. No Brasil ainda não temos um levantamento exclusivo desse tipo, mas não é difícil imaginar que a moda possa começar a pegar aqui também, no governo Bolsonaro os casos de censura na arte aumentaram consideravelmente…
- O Twitter está morrendo depois que Elon Musk, o bilionário sem noção assumiu a empresa, mas ainda há espaço para trabalhos importantes por lá, como o perfil Machado de Assis Online. Todo dia ele traz informações sobre a vida, a escrita e a influência do Bruxo do Cosme em outros autores, mantendo a sua memória viva também nos rastros digitais. Um dos destaques são as várias fotos do autor que o perfil tuíta constantemente, o que é interessante para evidenciar que Machado de Assis foi um escritor negro, fato invisibilizado por muito tempo. É um vasto trabalho de pesquisa – e de curadoria, trazendo registros de jornais, por exemplo, com textos e crônicas de Machado, não tão conhecidos quanto sua prosa ficcional.
Prosa Científica: o futuro do livro e da leitura no governo Lula
Conversamos com o doutor e professor José Castilho, uma das autoridades na área de políticas públicas do livro e um dos criadores do Plano Nacional do Livro e Leitura.
1) Qual você acha que deve ser as prioridades da recém-criada Secretaria de Formação e de Livro e Leitura no Ministério da Cultura?
Desde o início da campanha eleitoral os ativistas do setor já colocaram a necessidade de um novo Ministério da Cultura alçar o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas a um patamar político e de prestígio governamental compatível com a centralidade que o tema exige no Brasil, ainda mais quando o próprio Presidente Lula levantou exaustivamente o lema “Mais livros e menos armas”, verdadeira síntese do que é preciso fazer hoje com urgência no Brasil da reconstrução contra a fome, pelo emprego e pela vida digna a todos e todas no país. Pontos importantes: a inadiável implantação da Lei 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, instrumento de organização vertical e horizontal de restauração dos programas públicos de todo o setor por intermédio de um novo PNLL decenal; e a prioridade de investimentos nas bibliotecas de acesso público (públicas, escolares, comunitárias), hoje em franco processo de resistência para se manterem atuantes e principais instrumentos de democratização do acesso à leitura para os brasileiros e brasileiras.
2) Uma educação crítica pode combater extremismos. Qual o papel da mediação e da formação de mediadores de leitura?
Respondo relembrando trecho de uma carta aberta que fizemos, eu e a Professora Eliana Yunes, chamando a atenção para a devida prioridade à formação de leitores: Consideremos o equívoco secular de supor que sem um povo educado, leitor crítico do mundo e das notícias, com o Imaginário aberto a soluções qualificadas, mais que quantificáveis, será possível mudar o panorama social e político com que temos convivido. A leitura, como enfatizaram Paulo Freire e Antonio Candido, humaniza, pois, coloca o leitor em face de outras vidas, perspectivas, criações, nas letras e nas artes em geral. O público brasileiro demandará pelas artes plásticas, pelo teatro e cinema, pela música, não só nos carnavais, exposições, espetáculos e shows, na medida em que puder entender seu lugar na vida cotidiana do trabalho criativo e da partilha de ideias. Esta é a real dimensão do direito à educação e à cultura para todos. Consideremos, outrossim, que a verdadeira recuperação da educação fundamental no país, passa pela ênfase decidida e decisiva na formação de sujeitos com capacidade de usar as linguagens, isto é, da capacidade em ouvir, falar, ler e escrever, - dialogar segundo sua expressiva argumentação de valores – que lhes retira da condição de objetos teleguiados para se assumirem como responsáveis pelas suas ações e de seu entorno. Numa palavra, que se tornem leitores e leitoras.”
Apóstrofos
- Até o dia 25 de abril segue aberto o prêmio Todavia de Não Ficção. É o terceiro ano da premiação, que agora propõe a produção de biografias e perfis biográficos que apresentem a narrativa de pessoas extraordinárias. Saiba mais.
- A Revista Quatro Cinco Um conta com dois novos colunistas: os escritores Juliana Borges e Ondjaki, confira esse podcast da publicação em que eles refletem sobre as diferentes formas do racismo e o futuro das democracias
- Em abril, acontece o curso "Introdução ao pensamento de Walter Benjamin: o tempo do agora", que apresenta uma porta de entrada para a obra de um dos mais importantes filósofos do século XX. Os encontros são online com o pesquisador e professor André Araújo.
Da memória
Em 1979, o diretor de teatro Augusto Boal estava exilado em Paris, na França. De lá, ele escreve uma carta bonita e dolorosa para o amigo Gianfrancesco Guarnieri, também diretor e ator. Essa correspondência é mais um registro da época de chumbo do País em que vários artistas, políticos e ativistas tiveram que se afastar para se manter vivo. Para quem não conhece, Boal foi um dos dramaturgos que mais contribuiu para a criação de um teatro brasileiro e latino americano. Desde os primórdios de sua carreira, no teatro de Arena, até o Teatro do Oprimido, técnica que o tornou mundialmente conhecido. A carta está no site Correio IMS. Escute clicando no botão abaixo:
Questão da quinzena
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